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Futebol e política misturam-se? No Euro 2024 não se tem jogado apenas no campo

03 jul, 2024 - 07:00 • João Carlos Malta , Eduardo Soares da Silva

Tensão nos Balcãs entre sérvios, albaneses e croatas agitou o ambiente fora de campo. E as declarações de dois craques da seleção francesa mexeram com a campanha para as próximas eleições em França. A ideia de que o futebol une os povos pode ser “ingénua.

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A polarização política e social na Europa está a arrastar o Europeu de futebol, que se realiza até meio deste mês na Alemanha, para o campo de batalha geopolítico e até eleitoral. A primeira semana começou logo com as declarações de dois avançados da seleção francesa, Marcus Thuram e do galático Kylian Mbappé, que apelaram ao combate à extrema-direita nas próximas eleições.

João Carvalho — investigador do ISCTE que se tem dedicado ao estudo dos movimentos da extrema-direita europeia e às políticas de imigração — vê esta ação dos jogadores da seleção francesa não como uma novidade ou uma surpresa, mas uma “continuidade histórica”.

“Em 2002, Lilian Thuram, o pai, também se pronunciou sobre a segunda volta das presidenciais que punha frente-a-frente, Jean Marie Le Pen e Jacques Chirac, e nessa ocasião a seleção francesa também tomou uma posição sobre o extremismo”, lembra.

Numa das primeiras conferências de imprensa dos gauleses nesta competição, Marcus Thuram lançou a polémica ao dizer que “há mensagens transmitidas todos os dias na televisão para ajudar esta festa [a extrema-direita] a passar”.

E continuou: “Como disse o Ousmane [Dembélé], devemos dizer a todos para irem votar. Como cidadãos, sejam vocês ou eu, devemos lutar diariamente para que isto não volte a acontecer e que o RN [partido Rassemblement National] não passe".

No final, passou a ideia de que o que ali defendeu é a posição oficial dos “bleus”. O futebol e a política fundiam-se nas declarações do jogador do Inter de Milão. “Não tenho dúvidas de que todos partilham a minha visão sobre as coisas. Estamos num país livre e todos deveriam fazer o que acham certo. Eu chego aqui e digo certas coisas. Outras pessoas podem não dizer isso, mas, repito, não tenho dúvidas de que todos pensam como eu".

Pouco depois de Thuram, Mbappé foi à sala de imprensa dar força à mesma mensagem do companheiro de ataque.

“Vivemos um momento muito importante da história do nosso país, uma situação inédita. E é por isso que quero dirigir-me a todo o povo francês, e sobretudo à geração jovem. Creio que somos uma geração que pode fazer a diferença. Vemos que hoje os extremos estão à porta do poder e temos a oportunidade de escolher o futuro do nosso país", disse o novo jogador do Real Madrid, cuja ligação quase umbilical ao Presidente Emmanuel Macron é sobejamente conhecida.

"Espero que a minha voz chegue a muitos, porque precisamos de nos identificar com este país, precisamos de nos identificar com os nossos valores, que são os valores de diversidade, de tolerância, de respeito", prosseguiu o internacional francês, sublinhando a importância de votar nas próximas eleições.

Mas afinal que impacto têm estas palavras na sociedade francesa? Para o investigador do ISCTE será “diferenciado”, dependendo da franja da população que o ouve, e certamente “não terá o mesmo de 2002”. “Há um segmento da população que admira os seus desportistas e futebolistas, que pode vir a ser influenciada pelo apelo”, considera.

Mas por outro lado, alerta, as estrelas de futebol têm “níveis de rendimento que os separam das classes populares”.

Em conclusão, João Miguel Carvalho diz que pode haver quem se “mobilize”, mas também quem “se afaste das recomendações dos desportistas porque não os considera da mesma classe social e não têm as mesmas posições”.

As declarações das estrelas gaulesas incendiaram de imediato a luta política em França e acicataram as reações da extrema-direita europeia.

Uma das vozes mais audíveis foi a de Jordan Bardella, candidato da União Nacional às Legislativas francesas. Referiu-se exatamente à condição social dos futebolistas que disse “ganharem muito dinheiro” e que se “sente envergonhado” quando “dão lições a pessoas que não conseguem mais do que sobreviver”.

Na mesma linha, o vice-presidente da União Nacional repetiu a ideia: "Muitos dos nossos eleitores apoiam a seleção francesa. Eles gostam de Mbappé. Eu gosto do Mbappé como jogador, mas não espero que ele me dê lições sobre política. Os franceses não precisam de pessoas desligadas, distantes das suas preocupações quotidianas, que venham dizer-lhes como devem votar”.

João Miguel Carvalho contextualiza estas tensões entre a União Nacional e a equipa francesa. “Para Bardella, a seleção francesa acaba por ser o contraponto para a sociedade que propõe. Uma das propostas que tem é a de privar os binacionais de postos de trabalho”, assinala.

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"Rendimentos dos jogadores separam-nos das classes populares, pode haver quem se afaste das recomendações dos desportistas porque não os considera da mesma classe social e não têm as mesmas posições”, João Miguel Carvalho, investigador do ISCTE

Mas as palavras dos craques franceses tiveram também eco no mundo do futebol. Nem sempre as reações foram de solidariedade. O espanhol Unai Simón, titular da seleção e do Athletic Bilbau, clube altamente politizado e que só alinha com jogadores de origem basca, também reagiu às palavras de Mbappé para contra-atacar.

“Kylian é uma pessoa que tem muita repercussão no mundo, na sociedade, nós jogadores temos muita repercussão pública. É um tema político, acho que, muitas vezes, temos a tendência de opinar muito sobre temas que não sei se deveríamos. Sou jogador de futebol, dedico-me ao futebol”, argumentou.

O mesmo diz à Renascença o futebolista Hugo Vieira, que em Portugal fez carreira no Minho, no Gil Vicente e Braga, mas que também andou por países como a Rússia, a Sérvia ou a Roménia. Acha que Thuram e Mbappé não deviam ter-se metido no jogo político.

“Eu acho que não deveria acontecer, mas infelizmente acontece em todo lado. As pessoas gostam dos jogadores por aquilo que eles fazem, por aquilo que eles produzem dentro de campo”, começa por dizer o ainda jogador que foi também candidato à presidência do Gil Vicente esta época.

E acrescenta também que conhece casos concretos de jogadores que foram condicionados a tomar este tipo de comportamento político em público. “Infelizmente já aconteceu, já aconteceu amigos meus que foram praticamente obrigados”, denuncia.

“Não posso dizer nem onde, nem quem, mas a um deles até ameaçaram a família”, ilustra.

Os efeitos práticos deste apoio de desportistas a políticos são para o investigador João Carvalho muito duvidosos.

“Nas eleições norte-americanas há um grande envolvimento dos atores de Hollywood nas campanhas políticas e não creio que se reverta em mais votos para os candidatos por eles apoiados. Isto porque apesar de terem um forte poder mediático, isso pode não ter os efeitos políticos desejáveis”, assinala.

Em resumo, considera que apelo à participação nos sufrágios é positivo, mas o “apoio direto pode ser contraproducente e alienar [os votantes]”.

Mas não foram só as eleições francesas que dominaram as discussões políticas no Euro 2024. A segunda semana ficou marcada pelo reavivar das tensões nos Balcãs.

O novo episódio ocorreu durante o empate em Hamburgo, entre Croácia e Albânia, em que os adeptos daqueles dois países gritaram “Morte aos sérvios”. Isso gerou reação imediata dos responsáveis da Sérvia que ameaçaram abandonar o campeonato caso a UEFA não avançasse com penalizações para os dois países.

Luís Tomé, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, considera que é sem surpresa que assiste ao recrudescer da animosidade naquela região que ganhou nova visibilidade no Campeonato da Europa de Futebol.

“O futebol é bastante mais do que o acontecimento desportivo e em particular neste tipo de grandes eventos mediáticos”, começa por dizer. E as causas políticas associadas, sobretudo no caso das seleções, vêm ao de cima.

“Nada de estranho, estando em causa duas equipas dos Balcãs que resultam de um país [Jugoslávia] que implodiu de forma muito violenta e muito sangrenta, digamos, no início dos anos 90, após a Guerra Fria. É bom recordar que a Croácia chegou à independência depois de uma guerra civil”, diz.

O conflito foi tão sangrento e violento que levou o Tribunal Penal Internacional a decretar pena perpétua a Ratko Vladic, responsável pelo exército sérvio, e 40 anos de prisão para Radovan Karadžić, líder sérvio bósnio.

A estes pontos de tensão soma-se ainda a mais recente independência do Kosovo.

“Os ódios de várias etnias, nações e países contra a Sérvia são muito acentuados e vêm desde o século XIX, que na luta contra o império Otomano foi apoiada pelos russos. Sempre houve o objetivo de criar a grande Sérvia na zona dos Balcãs”, resume Tomé.

E agora, enfatiza este especialista, está criado o caldeirão perfeito, com “uma enorme polarização na política mundial”, e “sabendo nós que a Sérvia continua a ser bastante pró-russa, inclusivamente neste contexto de guerra da Ucrânia, embora seja candidata à integração na União Europeia”.

O futebolista Hugo Vieira, que jogou na Sérvia duas épocas, no Estrela Vermelha - onde apontou 29 golos em 51 jogos oficiais -, assume uma posição solidária com aquele país. O minhoto pensa que esta situação não devia acontecer no futebol, mas lança críticas aos albaneses.

“Isso da Albânia é uma vergonha. Eles apoiam o Kosovo e é a mesma coisa que apoiar o Putin e Israel”, considera.

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“Temos exemplos concretos de consequências diretas associadas a eventos desportivos", Luís Tomé, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa

“São situações muito delicadas, muitas mortes envolvidas e querem tirar uma parte de um país para transformar noutro. É muito complicado para quem conhece a história, é muito injusto para a Sérvia e os sérvios não querem que isso aconteça e vão fazer tudo para que não aconteça”, acrescenta.

Quem não tem tido mãos a medir com todas estas agressões contra agressões verbais é a UEFA, organismo que se tem multiplicado em multas aos países dos Balcãs.

Uma delas foi dirigida ao atacante albanês Mirlind Daku, suspenso por dois jogos depois de levar os espetadores no estádio a gritarem slogans anti-macedónios após o jogo Albânia-Croácia. A federação albanesa de futebol foi multada em 47.250 euros por causa do incidente.

Mas se os sérvios se dizem vítimas dos cânticos croatas e albaneses, são também acusados de exibir uma bandeira nacionalista durante o jogo de 16 de junho contra a Inglaterra. Em cima do desenho em que se via o território do Kosovo estava um slogan: “Não nos rendemos”.

A UEFA descreveu a frase como “uma mensagem provocativa e inadequada para um evento desportivo”. Entretanto, a UEFA multou as federações albanesa e sérvia em 10 mil euros cada.

O Kosovo, recorde-se, declarou independência da Sérvia em 2008, após um conflito sangrento no final da década de 1990. A questão ainda é controversa, uma vez que apenas 22 dos 27 estados-membros da UE reconhecem a sua nacionalidade.

O especialista em relações internacionais Luís Tomé assinala que, além de França e dos Balcãs, há mais lutas políticas no Euro. Os ucranianos têm aproveitado o palco mediático da competição para denunciar o que consideram ser a barbárie russa, e tem ainda havido manifestações públicas sobre a guerra na Faixa de Gaza.

A política interna da Geórgia também entrou no Europeu. O país apurou-se pela primeira vez para o torneio e chegou aos oitavos de final, mas o ambiente na capital Tiblíssi não tem sido de festejo nas últimas semanas. O Governo aprovou uma lei que tem sido encarada como uma aproximação à Rússia e multiplicaram-se as manifestações, muitas delas violentas.

As principais vedetas da seleção não ficaram neutras em relação ao que se passa no país que, em dezembro do ano passado, ganhou também o estatuto de candidato à União Europeia.

O capitão Jaba Kankava, que rejeitou ir ao Europeu sem explicar o motivo, escreveu “que se lixe a Rússia” nas redes sociais em maio. Outros como o avançado Kvaratskhelia e o guarda-redes Mamardashvili também publicaram mensagens de apoio ao movimento europeu.

Segundo Tomé, olhar para o desporto e o futebol como algo que une os povos pode ser “uma visão demasiado romântica”.

E recorda a tese de doutoramento recente de um oficial de polícia, sobre o desporto e os grandes eventos desportivos, em que a conclusão é que os mesmos são “instrumentos dos jogos de poder da política mundial”.

Luís Tomé exemplifica com o que chama de “verdadeiro doping de Estado”, como acontecia na antiga República Democrática da Alemanha ou, mais recentemente, com a Rússia nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014.

“Eventos desportivos servem os mais variados jogos de poder e de diversas formas”, sinaliza.

“Nós sabemos como a própria organização e acolhimento de grandes eventos desportivos é um símbolo de poder ou de ‘soft power’ de afirmação internacional, tal como aconteceu com os Jogos Olímpicos de Seul em 1988 ou o Mundial de Futebol do Qatar”, exemplifica.

Mas estas manifestações são apenas simbólicas e mediáticas ou podem mesmo ter repercussões no terreno? Luís Tomé diz que não podemos ser ingénuos.

“Nós temos exemplos concretos de consequências diretas associadas a eventos desportivos. Uma guerra civil entre o El Salvador e as Honduras começou precisamente quando estava a decorrer um jogo entre duas equipas. Nós lembramos de que o célebre jogador Boban, quando estava no AC Milan, que num jogo precisamente no contexto dos Balcãs, deu eco a uma série de manifestações violentas. Ou ainda o contexto de Guerra das Malvinas, dos perigos que todos estavam a temer, do confronto entre a Argentina e a Inglaterra no Mundial de futebol”, remata.

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