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Fórmula 1

Quando a F1 começava a 1 de janeiro, a lenda era Fangio e a estrela era Jim Clark

01 jan, 2025 - 08:30 • João Pedro Quesado

Na época das imagens a preto e branco, a liberdade da falta de compromissos comerciais permitia aos pilotos limar as arestas em corridas que não contavam para o campeonato. A F1 estava longe da popularidade de hoje, mas viu a morte de um piloto ser capa de jornais e causar um choque semelhante à de Ayrton Senna.

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O início da temporada de 2025 da Fórmula 1 está, neste dia de ano novo, a 75 dias de distância, num ano em que a F1 celebra precisamente 75 anos de existência. A espera por março é um dado adquirido na F1 moderna, mas nem sempre foi assim - há 60 anos, o campeonato não só começou na primeira semana do ano, como a primeira corrida teve lugar a 1 de janeiro. O feito repetiu-se três anos depois, numa corrida em que o recorde de maior número de vitórias caiu, e a F1 se despediu inadvertidamente de uma das suas lendas.

A Fórmula 1 era um campeonato muito diferente em 1965. A agora mítica Ferrari tinha acabado 1964 a correr de azul e branco e, se a Scuderia tinha alguma rivalidade, era com a britânica Lotus – que começou a vencer campeonatos na década de 1960, representando o desafio das pequenas equipas “garagistas” a marcas mais estabelecidas que definiram a primeira década de Grandes Prémios depois da Segunda Guerra Mundial.

Longe de conhecer os nomes de Verstappen, Hamilton, Schumacher, Senna, Prost, Mansell, Piquet, Lauda e até Fittipaldi, a F1 já vivia, em 1965, à sombra de um génio, chamado Juan Manuel Fangio. Em sete temporadas, o argentino foi campeão cinco vezes por quatro marcas diferentes – Alfa Romeo, Mercedes, Ferrari e Maserati –, deixando a sua marca nos primeiros anos do que era então o Campeonato Mundial de Pilotos. Conquistou o último título com 46 anos.

Mas estes eram os “Swinging Sixties”, e as duas corridas de 1 de janeiro, em 1965 e 1968, foram conquistadas pela nova estrela da companhia: Jim Clark. O escocês, filho de criadores de ovelhas de Fife, começou a competir aos 20 anos, e foi numa corrida no “Boxing Day” de 1958 que se apresentou ao seu futuro patrão: Colin Chapman, o engenheiro que fundou a Lotus.

Em 1963, não só Clark foi o primeiro piloto a tornar-se campeão nos carros verdes “British Racing Green” da Lotus, como, aos 27 anos, foi então o mais jovem campeão desde o início da F1. Depois de repetidas desistências por problemas mecânicos entregarem o título do ano seguinte a John Surtees, da Ferrari, a corrida de 1 de janeiro de 1965 foi o regresso do “tímido” Clark às vitórias dominantes, com 29 segundos de vantagem.

Essa vitória correu sem dramas como o que aconteceria em Silverstone, em julho, quando o motor do Lotus de Clark começou a ficar sem óleo nas últimas 20 voltas, obrigando o escocês a aproveitar a vantagem de 34 segundos e desligar o carro nas curvas para evitar danos no motor. No fim das 80 voltas, o piloto conhecido por ter um estilo “leve” e suave venceu por 3,2 segundos.


Em 1966, o GP da África do Sul saiu do campeonato por não cumprir as regras da F1, ao aceitar carros com motor de 1.5 litros quando o regulamento tinha sido alteradas para motores com o dobro da capacidade. Em 1967, a corrida voltou ao campeonato, mas esses dois anos não foram amigos de Jim Clark – um total de dez desistências em 20 corridas eliminaram todas as hipóteses de repetir os títulos de 1963 e 1965.

Contudo, as vitórias que foi conseguindo nos anos em que não foi campeão permitiram que, ao vencer a corrida sul-africana a 1 de janeiro de 1968, Clark se tornasse então no piloto com mais vitórias na F1 – ganhou 25 corridas, além de também deter o recorde de pole positions (33) e de voltas mais rápidas (28) até à data. E não é que tivesse faltado ao passar da meia-noite para dormir cedo e assegurar que estava descansado para a corrida.

Ninguém teria então a ousadia de pensar que esses seriam os números definitivos sobre a carreira de Jim Clark. Mas a longa espera pela segunda corrida do campeonato, que apenas aconteceu a 12 de maio, deu espaço para participar noutras competições, como a Tasman Series – um campeonato de Fórmula 2 na Austrália e Nova Zelândia, que Clark venceu nesse ano pela terceira vez.


O escocês, então com 32 anos, tinha até ali escapado incólume às frequentes tragédias da F1 naquela época. Na segunda corrida da sua carreira, na Bélgica em 1960, dois pilotos morreram com cinco voltas de diferença: Chris Bristow ficou decapitado e Alan Stacey morreu queimado, num episódio que faria de Clark (que mais tarde admitiu estar permanentemente “assustado” nessa corrida) um dos detratores da pista de 14 quilómetros de Spa. No ano seguinte, em Monza, viu-se envolvido numa colisão que atirou o Ferrari de Wolfgang von Trips para fora no fim de uma longa reta, matando o piloto alemão e 14 espetadores italianos.

Em abril de 1968, a Lotus levou os seus carros de Fórmula 2 a uma corrida na temível pista de Hockenheim, na Alemanha, onde muitos outros pilotos de F1 também apareceram. Na quinta volta da primeira corrida, no dia 7 de abril, o Lotus 48 de Jim Clark desapareceu na densa floresta alemã, transformando-se num piscar de olhos em formas abstratas de metal desfeito e torcido.

O agricultor (a descrição principal de Clark no seu túmulo, conforme os desejos do escocês) morreu com fraturas no pescoço e crânio. Numa era em que as mortes eram comuns nas pistas, as reações foram semelhantes às que o mundo teria a 1 de maio de 1994, na morte de Ayrton Sennachoque e incompreensão sobre como "alguém com o talento e capacidade sublime de Clark” podia desaparecer daquela forma. Até hoje, a principal suspeita recai sobre um furo que fez o carro descontrolar-se.

Apesar dos mais de 50 anos que já passaram, a dimensão de Jim Clark vê-se não só nas histórias, mas também nos recordes que ainda detém. O escocês ainda é o recordista de “grand slams” (a conquista, num GP, da pole position, vitória sem nunca perder a liderança da corrida, e volta mais rápida), com oito. Outro recorde (com um asterisco e partilhado com Alberto Ascari) é o de conquistar a maior percentagem de pontos numa temporada – terminou com 100% dos pontos possíveis em 1963 e 1965. O asterisco é que, nessa época, apenas os seis melhores resultados contavam para o campeonato.

Na autobiografia “Jim Clark At The Wheel”, o piloto admitiu pensar no perigo das corridas “de tempos a tempos”, “especialmente quando há muitas árvores”. O homem que considerava as corridas “uma arte” acabou descrito pelo pentacampeão Juan Manuel Fangio como “o maior piloto de Grandes Prémios de todos os tempos”. Afinal, Clark é, ainda, o único piloto a ser campeão de F1 e vencer as 500 Milhas de Indianápolis, nos Estados Unidos, no mesmo ano (1965). Quando o fez, foi com uma vantagem de dois minutos numa pista oval onde uma volta que demorava pouco mais de um minuto.

Calendários feitos para perseguir o sol à volta do mundo

Na Fórmula 1 de hoje, as equipas produzem carros quase totalmente novos todos os anos, que depois testam num número de dias limitado pela Federação Internacional do Automóvel (FIA) para evitar os gastos astronómicos dos anos 2000. Na década de 1960, mal havia aerodinâmica para testar – os monolugares eram pouco mais do que um tubo com partes mecânicas aparafusadas e um piloto entre tanques de combustível, e eram frequentemente utilizados por mais do que um ano sem grandes mudanças além de comprar o motor a um fabricante diferente.

Sem necessidade de pausas longas para construir novos carros, as temporadas podiam andar ao sabor das estações do ano (e das datas que davam jeito a quem organizava as corridas). Se havia corridas no hemisfério Sul, essas eram para se fazer durante o Inverno do hemisfério Norte. Foi assim que o início da temporada foi puxado para janeiro quando o Grande Prémio da Argentina surgiu, ainda Perón estava para ser derrubado do poder.

O mesmo aconteceu com a África do Sul. Em 1961, a caravana das corridas extra-campeonato levou os pilotos a regressar ao país pela primeira vez desde 1939, com três corridas em dezembro - os Grandes Prémios de Rand, Natal e África do Sul, nos dias 9, 17 e 26.

O que eram as corridas extra-campeonato? Um resquício do regresso às pistas depois da Segunda Guerra Mundial. Como um conjunto de regras (uma fórmula) para corridas de Grandes Prémios, a F1 começou a existir em 1946, ano em que foi utilizada pela primeira vez no Grande Prémio de Turim. Dezenas de corridas aconteceram com as regras de F1 a partir de então, mas o Campeonato Mundial de Pilotos (que hoje é a Fórmula 1) apenas começou em 1950, ano em que teve seis corridas, mas houve mais 18 a acontecer com as regras da F1. Escusado é dizer que a expressão “Grande Prémio” ainda não era uma marca registada.

Voltando ao calendário: Em 1962, o GP da África do Sul passou ao campeonato mundial, mas ficou no dia 29 de dezembro – e como a corrida anterior tinha sido no início de outubro, a decisão do título de pilotos desse ano ficou pendurada durante uns inimagináveis quase três meses.

A história de 1964 seria semelhante à de 1962, com a corrida sul-africana marcada para 26 de dezembro. Contudo, os organizadores do Grande Prémio decidiram adiar a corrida em cerca de uma semana. Assim, de uma forma impossivelmente simples nos dias de hoje, a última corrida de 1964 passou a ser a primeira corrida de 1965, e a F1 começou o campeonato no Dia de Ano Novo – uma sexta-feira.

Era este caldo, possível apenas quando os interesses comerciais eram uma parte totalmente secundária da F1, que permitia aos pilotos competir em tantas das provas importantes que hoje são mutuamente exclusivas. A progressiva comercialização da F1 tornou tudo isto impossível. Desde a década de 1980 que as equipas estão ligadas à F1 por um contrato, ao invés de apenas uma inscrição, e tanto os organizadores dos Grandes Prémios como as televisões que os transmitem esperam que o produto pelo qual pagaram tantos milhões de euros seja fiável e consistente. Para manter a atenção do público e uma narrativa coerente, não pode haver meses a separar corridas da mesma temporada.

Os calendários estão perto das 25 corridas por ano, com fechos obrigatórios das fábricas em três semanas de agosto e no período de Natal para que a vontade das equipas em vencer não se sobreponha à necessidade de descanso de ninguém. A única pausa verdadeiramente longa é a do inverno, entre uma temporada e a outra, quando as equipas trabalham 24 horas por dia para conseguir o melhor carro possível. Já não há espaço para mais nada.

Apesar de toda essa lógica, o fim das corridas em janeiro (a última corrida foi em 1982) teve uma natureza acidental. A corrida sul-africana devia continuar no primeiro mês em 1983, mas uma mudança tardia nos regulamentos para acabar com o efeito solo (que tornava os carros demasiado rápidos para a segurança da altura) fez as equipas pedirem mais tempo para a aplicar, e assim a corrida passou para outubro de 1983. Depois de 1985, quando Renault e Ligier boicotaram a corrida, a F1 parou de ir à África do Sul devido ao apartheid, que isolava cada vez mais o país no mundo. Assim, o início do campeonato passou definitivamente a estar ligado ao início da primavera no hemisfério Norte.

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