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Benfica

“Com Eriksson, a inibição desapareceu”: a história da chegada de Sven-Göran ao Benfica

22 mar, 2024 - 12:15 • Hugo Tavares da Silva

Do futebol amador sueco, enquanto trabalhava como aprendiz de pasteleiro, Eriksson saltou para o Gotemburgo, onde conheceu a textura do céu. Seguiu-se o Benfica, em 1982/83, para o que seria uma época dourada. João Alves e José Manuel Delgado contam alguns episódios.

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Os lugares vazios no Estádio da Luz iam perdendo esse estatuto. Faltavam qualquer coisa como 15 minutos para a bola rolar no Benfica-Rio Ave. José Manuel Delgado, o guarda-redes suplente, aquecia Manuel Bento, o guarda-redes titular. Depois de um cruzamento de José Luís, Delgado, qual Bierhoff antes de Bierhoff, deu uma admirável cabeçada na bola. Bento estava a apertar as botas, distraído. Quando levantou a cabeça, a bola beijou-lhe com vontade o nariz como se fosse a testa.

Delgado achou que Bento estava na galhofa: “Deixa-te de coisas, pá”. Quando aquela figura mitológica do Barreiro levantou o rosto, o sangue escorria-lhe como lágrimas. Tinha o nariz partido. O ‘12’ de Delgado passou para as costas de Bento e o ‘1’ investiu na viagem inversa. Sven-Göran Eriksson, que tinha então a mesma idade do mítico guarda-redes, não disse nada durante aquela película desavinda. O Benfica tinha apenas dois ou três pontos de avanço para o FC Porto, não consegue precisar Delgado, que sentiu como nunca o peso da responsabilidade.

À saída do balneário, nas escadas que desciam antes de se subir para o relvado, Eriksson cancelou o silêncio. “Disse-me três palavras apenas: ‘keep the zero’ [risos]. Portanto, não sofras golos. Foi a única coisa que ele me disse para aliviar a pressão”, recorda Delgado a Bola Branca. “Ele percebeu que eu estava completamente asfixiado pela pressão.” O jogo não correu muito bem, já que o Rio Ave arrancou um empate na Luz, mas Delgado cumpriu o pedido do sueco. A baliza ficou a zeros.

Este sábado, e depois de anunciar que sofre uma doença terminal, Eriksson, de 76 anos, vai cumprir o sonho de se sentar em Anfield para orientar o “seu” Liverpool. Será uma homenagem em troca do tanto que deu ao futebol. À sua disposição terá feras lendárias como Ian Rush, John Barnes, John Aldrige, Jerzy Dudek e Djibril Cissé contra outras tantas do Ajax. A Renascença puxou a fita atrás e foi saber como foi a chegada do arquiteto das ideias inovadoras e plásticas a Lisboa.

“Depois do Mundial, todos queríamos ser o Pelé”

Mal chegou ao aeroporto lisboeta, no verão de 1982, foi encaminhado por Börje, o empresário que terá orquestrado o interesse benfiquista, e Fernando Martins, o presidente do Benfica, para o estádio, mais exatamente para o museu. “A sala estava atafulhada de troféus. Nunca tinha visto nada tão impressionante. Então, percebi o que esperavam de mim. Penso que foi por isso que me mostraram aquela sala”, confessou na sua autobiografia, escrita a quatro mãos com Stefan Lövgren.

A chegada de Eriksson à capital portuguesa foi o resultado de uma soma de improbabilidades. Em bebé, viveu com a mãe num quarto sem luz e água. Depois, dormiu num sofá-cama na cozinha, “o que não era mau de todo porque ficava junto do forno de ferro e estava sempre quente”. Praticou esqui e também hóquei no gelo. Quando o inverno dava uma trégua, o futebol era protagonista. Tinha 10 anos quando a Suécia recebeu o Campeonato do Mundo, em 1958, que sentenciou o fim do ‘vira-latismo’ brasileiro. “Depois do Mundial, todos queríamos ser o Pelé.”

Foi aprendiz de padeiro na adolescência. O patrão, que desenhava táticas e movimentações no chão com a farinha, era treinador de futebol e hóquei no Torsby, onde “Svennis” começaria uma vulgar carreira de futebolista. Os scones e as bolachas de gengibre começavam a ganhar forma a partir das 4h da manhã. Estreou-se com 16 anos pelo Torsby, na 4.ª Divisão. Aos 18 trabalhava num escritório de seguros e mantinha o futebol. Entre cartadas, palavras que pintavam o futuro e dezenas de copos de glögg, Sven disse aos amigos: “Vou ser famoso”.

Carregando no botão para acelerar esta lengalenga: começou como adjunto aos 27 anos, no Degerfors, da 3.ª Divisão. Estávamos em 1976, já os ingleses haviam inspirado o futebol sueco com um furioso e solidário 4-4-2. “Foi uma revolta contra o individualismo”, escreve no livro, o sueco que se apaixonou pelo ‘futebol total’ da Holanda. Começou a pensar como um treinador ainda enquanto jogador quando, depois de ser enganado pelas firulas de um extremo na 2.ª Divisão, tal como o lateral da Suécia o foi com Garrincha na final de 58, pediu que os centrais se aproximassem, magicando uma cobertura. “Comecei a pensar que o futebol podia ser mais do que correrias de 40 metros e duelos individuais.”

Em Lisboa, já depois de subir as escadas do futebol sueco (estreou-se como treinador principal no Degerfors, em 77/78) e vencer a Taça UEFA com o Gotemburgo, Eriksson encontrou um grupo de jogadores tremendos, que tinham curiosidade sobre o que estava por chegar. “Vínhamos de um má época e estávamos esperançados que as coisas pudessem resultar. Ele trouxe ideias muito diferentes quanto à parte tática do jogo, falava-se na altura que às equipas portuguesas faltavam os últimos 30 metros”, diz João Alves a esta rádio. A recuperação de bola, asfixiante, começou a ser feita em função da qualidade e características do adversário. Não surpreende essa valorização do rival num homem que pediu a Anki, a mulher, para ir espiar adversários na 3.ª Divisão da Suécia.

O futebolista que partiu o nariz a Bento, há muitos anos jornalista no jornal "A Bola”, começa por referir que o sueco, natural de Sunne, mudou a mentalidade do grupo. “As equipas portuguesas inibiam-se a jogar fora. Com ele, isso desapareceu. Em casa ou fora, adotava-se sempre o mesmo sistema de jogo, a mesma mentalidade. O sucesso foi muito grande.”

No primeiro treino no Benfica, ao lado de Toni (“um pensador”), os jogadores perguntaram-lhe se metiam as botas ou as sapatilhas, já que estavam habituados às tradicionais tareias, num trajeto abraçado por montanhas, correrias sem fim, sem o estímulo da ferramenta mais bonita deste ofício. “Vocês jogam com quê, botas ou sapatilhas? Se jogam com botas, o treino é com botas”, relata Delgado sobre as palavras do novo treinador. Houve bola desde o dia 1. “Ele teve a capacidade de meter a intensidade física necessária em exercícios com bola, isso foi realmente uma grande novidade.”

A palavra “inteligente” salta da boca destes dois ex-futebolistas várias vezes (“sabia quando falar e quando calar”), sobretudo para referirem que o convicto sueco soube alterar a forma de ver o jogo. Chegou com ideias muito afinadas sobre o futebol que queria. Direto, mais à inglesa e musculado, com a equipa curtinha, tal como vira nos tais 4-4-2 de Bob Houghton e Roy Hodgson, no Malmo e Halmstads BK, ambos campeões suecos.

“Com João Alves, Shéu, Chalana e Carlos Manuel era um meio-campo com jogadores tecnicamente muito bons e que gostavam de ter a bola no pé, criativos, então deixou de jogar com dois pontas de lança e meteu cinco médios”, lembra João Alves. Ou seja, não foi teimoso, percebeu o que a equipa pedia e o que era mais adequado. É a tal fina inteligência, soube cozinhar os dois estilos, mantendo o que era para ele inegociável: a equipa tinha de estar curta, com as linhas muito juntas. “Era um homem com grande vontade de aprender e melhorar”, lembra o senhor das luvas pretas, que revela também alterações na lógica dos estágios (“máxima responsabilidade, máxima liberdade”) por parte deste homem “calmo, calmíssimo”.

"Eu tinha sido adepto do Liverpool na minha juventude”

A certa altura, num voo de regresso do Funchal, Eriksson sentou-se ao lado de Delgado para lhe cantar a música que serena e corrói ao mesmo tempo. “Veio dizer-me que eu tinha muitas condições, que era bom guarda-redes e que estava a trabalhar muito bem, mas que só podia jogar um”, recorda, elogiando aqui e ali o tacto do mister com os jogadores (“era muito bom no aspeto psicológico”). O agora jornalista disse-lhe que estava tudo certo, que Bento era melhor e que, quando precisasse, ali estava ele. “Ele olhou para mim muito admirado: ‘Nunca um jogador me tinha respondido dessa forma’. Ficou agradado com a resposta, eu não lhe criava problema nenhum.”

Quem os treinava era Eusébio, mas até neste departamento foi necessária a intervenção do sueco que trouxe outra luz para Lisboa. “Fernando Martins queria que ele saísse do Benfica. Fiquei chocado”, pode ler-se na autobiografia do treinador, traduzida por Afonso de Melo. “Verem-se livres do Eusébio? Impossível! Pelo contrário. Sugeri que ele fizesse parte do staff como treinador de guarda-redes. Eusébio trabalhava muito bem com o Bento. No final de cada treino, ficavam em campo e apostavam quantos golos marcaria Eusébio em 10 remates. Não me recordo qual saía vencedor, mas não me surpreenderia que fosse Eusébio. A despeito dos seus joelhos arruinados, ainda tinha um tiro de canhão.”

A época 1982/83 foi dourada: título nacional e vitória no Jamor, contra o FC Porto, com golo de Carlos Manuel. Pecou-se apenas na final da Taça UEFA, contra o Anderlecht. João Alves jogou apenas meia hora naquelas duas partidas, mas não deixou que isso lhe afetasse o juízo sobre o homem que ajudou a revolucionar o futebol português. Olha para ele como um mentor. Tanto é assim que, alguns anos depois, João Alves era treinador do Boavista e saiu na rifa a Fiorentina na Taça UEFA. O já ex-jogador viajou até Itália para bater bolas com o seu treinador.

“Fui ver a Fiorentina e almocei com ele, em Roma. Ele abriu-me todos os pormenores desse adversário”, conta João Alves. “Ele estava a treinar a Roma. Foi muito importante e o Boavista, por coincidência ou não, passou a eliminatória, nas grandes penalidades, no Estádio do Bessa.” Sven-Göran Eriksson como olheiro do Boavista… Quem diria, hein?

Na segunda época no Benfica, “Svennis” conquistou apenas o campeonato, mas teve direito a um regresso à infância. Nos quartos de final da Taça dos Campeões Europeus, o sorteio ditou um duelo com o Liverpool de Dalglish, Souness e Rush. “Eu tinha sido adepto do Liverpool na minha juventude. Agora ia ter a hipótese de liderar uma equipa no lendário Anfield”, celebra no seu livro.

Delgado, que tivera pouco antes, no Portimonense, “a sorte” de ser treinado por Artur Jorge calçado com a escola do leste, recorda que o jogo foi preparado ao mais ínfimo detalhe. O nórdico disse tudo, tudo o que aconteceria em campo. “‘Qualquer erro que façamos, eles não perdoam’, disse-nos. ‘O Ian Rush, em quatro, marca três’”, conta o ex-guarda-redes. Rush resolveu em Anfield e na Luz deu goleada para os ‘reds', que seriam campeões europeus nessa temporada.

“Havia grandes esperanças em chegar à final e foi como se o balão do clube esvaziasse”, reflete na autobiografia, longe de sonhar com o que aconteceria em 1990. “Bem como o meu. Comecei a pensar se já não teria chegado o mais longe que era possível com o Benfica.”

Pouco tempo depois, a seguir ao treino, seguia no carro quando um taxi se colou a ele, buzinando e exibindo um eloquente festival de luzes. Pediram a Eriksson que encostasse. Era um empregado da embaixada de Itália em Lisboa, com uma mensagem: “Dino Viola quer falar consigo”. Era o presidente da AS Roma e o telefonema deu-se quando “Svennis” chegou a casa.

E assim começou a traçar-se o fim da primeira passagem de Eriksson no Benfica.

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