22 mar, 2024 - 12:15 • Hugo Tavares da Silva
Os lugares vazios no Estádio da Luz iam perdendo esse estatuto. Faltavam qualquer coisa como 15 minutos para a bola rolar no Benfica-Rio Ave. José Manuel Delgado, o guarda-redes suplente, aquecia Manuel Bento, o guarda-redes titular. Depois de um cruzamento de José Luís, Delgado, qual Bierhoff antes de Bierhoff, deu uma admirável cabeçada na bola. Bento estava a apertar as botas, distraído. Quando levantou a cabeça, a bola beijou-lhe com vontade o nariz como se fosse a testa.
Delgado achou que Bento estava na galhofa: “Deixa-te de coisas, pá”. Quando aquela figura mitológica do Barreiro levantou o rosto, o sangue escorria-lhe como lágrimas. Tinha o nariz partido. O ‘12’ de Delgado passou para as costas de Bento e o ‘1’ investiu na viagem inversa. Sven-Göran Eriksson, que tinha então a mesma idade do mítico guarda-redes, não disse nada durante aquela película desavinda. O Benfica tinha apenas dois ou três pontos de avanço para o FC Porto, não consegue precisar Delgado, que sentiu como nunca o peso da responsabilidade.
À saída do balneário, nas escadas que desciam antes de se subir para o relvado, Eriksson cancelou o silêncio. “Disse-me três palavras apenas: ‘keep the zero’ [risos]. Portanto, não sofras golos. Foi a única coisa que ele me disse para aliviar a pressão”, recorda Delgado a Bola Branca. “Ele percebeu que eu estava completamente asfixiado pela pressão.” O jogo não correu muito bem, já que o Rio Ave arrancou um empate na Luz, mas Delgado cumpriu o pedido do sueco. A baliza ficou a zeros.
Este sábado, e depois de anunciar que sofre uma doença terminal, Eriksson, de 76 anos, vai cumprir o sonho de se sentar em Anfield para orientar o “seu” Liverpool. Será uma homenagem em troca do tanto que deu ao futebol. À sua disposição terá feras lendárias como Ian Rush, John Barnes, John Aldrige, Jerzy Dudek e Djibril Cissé contra outras tantas do Ajax. A Renascença puxou a fita atrás e foi saber como foi a chegada do arquiteto das ideias inovadoras e plásticas a Lisboa.
Mal chegou ao aeroporto lisboeta, no verão de 1982, foi encaminhado por Börje, o empresário que terá orquestrado o interesse benfiquista, e Fernando Martins, o presidente do Benfica, para o estádio, mais exatamente para o museu. “A sala estava atafulhada de troféus. Nunca tinha visto nada tão impressionante. Então, percebi o que esperavam de mim. Penso que foi por isso que me mostraram aquela sala”, confessou na sua autobiografia, escrita a quatro mãos com Stefan Lövgren.
A chegada de Eriksson à capital portuguesa foi o resultado de uma soma de improbabilidades. Em bebé, viveu com a mãe num quarto sem luz e água. Depois, dormiu num sofá-cama na cozinha, “o que não era mau de todo porque ficava junto do forno de ferro e estava sempre quente”. Praticou esqui e também hóquei no gelo. Quando o inverno dava uma trégua, o futebol era protagonista. Tinha 10 anos quando a Suécia recebeu o Campeonato do Mundo, em 1958, que sentenciou o fim do ‘vira-latismo’ brasileiro. “Depois do Mundial, todos queríamos ser o Pelé.”
Foi aprendiz de padeiro na adolescência. O patrão, que desenhava táticas e movimentações no chão com a farinha, era treinador de futebol e hóquei no Torsby, onde “Svennis” começaria uma vulgar carreira de futebolista. Os scones e as bolachas de gengibre começavam a ganhar forma a partir das 4h da manhã. Estreou-se com 16 anos pelo Torsby, na 4.ª Divisão. Aos 18 trabalhava num escritório de seguros e mantinha o futebol. Entre cartadas, palavras que pintavam o futuro e dezenas de copos de glögg, Sven disse aos amigos: “Vou ser famoso”.
Carregando no botão para acelerar esta lengalenga: começou como adjunto aos 27 anos, no Degerfors, da 3.ª Divisão. Estávamos em 1976, já os ingleses haviam inspirado o futebol sueco com um furioso e solidário 4-4-2. “Foi uma revolta contra o individualismo”, escreve no livro, o sueco que se apaixonou pelo ‘futebol total’ da Holanda. Começou a pensar como um treinador ainda enquanto jogador quando, depois de ser enganado pelas firulas de um extremo na 2.ª Divisão, tal como o lateral da Suécia o foi com Garrincha na final de 58, pediu que os centrais se aproximassem, magicando uma cobertura. “Comecei a pensar que o futebol podia ser mais do que correrias de 40 metros e duelos individuais.”
Em Lisboa, já depois de subir as escadas do futebol sueco (estreou-se como treinador principal no Degerfors, em 77/78) e vencer a Taça UEFA com o Gotemburgo, Eriksson encontrou um grupo de jogadores tremendos, que tinham curiosidade sobre o que estava por chegar. “Vínhamos de um má época e estávamos esperançados que as coisas pudessem resultar. Ele trouxe ideias muito diferentes quanto à parte tática do jogo, falava-se na altura que às equipas portuguesas faltavam os últimos 30 metros”, diz João Alves a esta rádio. A recuperação de bola, asfixiante, começou a ser feita em função da qualidade e características do adversário. Não surpreende essa valorização do rival num homem que pediu a Anki, a mulher, para ir espiar adversários na 3.ª Divisão da Suécia.
O futebolista que partiu o nariz a Bento, há muitos anos jornalista no jornal "A Bola”, começa por referir que o sueco, natural de Sunne, mudou a mentalidade do grupo. “As equipas portuguesas inibiam-se a jogar fora. Com ele, isso desapareceu. Em casa ou fora, adotava-se sempre o mesmo sistema de jogo, a mesma mentalidade. O sucesso foi muito grande.”
No primeiro treino no Benfica, ao lado de Toni (“um pensador”), os jogadores perguntaram-lhe se metiam as botas ou as sapatilhas, já que estavam habituados às tradicionais tareias, num trajeto abraçado por montanhas, correrias sem fim, sem o estímulo da ferramenta mais bonita deste ofício. “Vocês jogam com quê, botas ou sapatilhas? Se jogam com botas, o treino é com botas”, relata Delgado sobre as palavras do novo treinador. Houve bola desde o dia 1. “Ele teve a capacidade de meter a intensidade física necessária em exercícios com bola, isso foi realmente uma grande novidade.”
A palavra “inteligente” salta da boca destes dois ex-futebolistas várias vezes (“sabia quando falar e quando calar”), sobretudo para referirem que o convicto sueco soube alterar a forma de ver o jogo. Chegou com ideias muito afinadas sobre o futebol que queria. Direto, mais à inglesa e musculado, com a equipa curtinha, tal como vira nos tais 4-4-2 de Bob Houghton e Roy Hodgson, no Malmo e Halmstads BK, ambos campeões suecos.
“Com João Alves, Shéu, Chalana e Carlos Manuel era um meio-campo com jogadores tecnicamente muito bons e que gostavam de ter a bola no pé, criativos, então deixou de jogar com dois pontas de lança e meteu cinco médios”, lembra João Alves. Ou seja, não foi teimoso, percebeu o que a equipa pedia e o que era mais adequado. É a tal fina inteligência, soube cozinhar os dois estilos, mantendo o que era para ele inegociável: a equipa tinha de estar curta, com as linhas muito juntas. “Era um homem com grande vontade de aprender e melhorar”, lembra o senhor das luvas pretas, que revela também alterações na lógica dos estágios (“máxima responsabilidade, máxima liberdade”) por parte deste homem “calmo, calmíssimo”.
A certa altura, num voo de regresso do Funchal, Eriksson sentou-se ao lado de Delgado para lhe cantar a música que serena e corrói ao mesmo tempo. “Veio dizer-me que eu tinha muitas condições, que era bom guarda-redes e que estava a trabalhar muito bem, mas que só podia jogar um”, recorda, elogiando aqui e ali o tacto do mister com os jogadores (“era muito bom no aspeto psicológico”). O agora jornalista disse-lhe que estava tudo certo, que Bento era melhor e que, quando precisasse, ali estava ele. “Ele olhou para mim muito admirado: ‘Nunca um jogador me tinha respondido dessa forma’. Ficou agradado com a resposta, eu não lhe criava problema nenhum.”
Quem os treinava era Eusébio, mas até neste departamento foi necessária a intervenção do sueco que trouxe outra luz para Lisboa. “Fernando Martins queria que ele saísse do Benfica. Fiquei chocado”, pode ler-se na autobiografia do treinador, traduzida por Afonso de Melo. “Verem-se livres do Eusébio? Impossível! Pelo contrário. Sugeri que ele fizesse parte do staff como treinador de guarda-redes. Eusébio trabalhava muito bem com o Bento. No final de cada treino, ficavam em campo e apostavam quantos golos marcaria Eusébio em 10 remates. Não me recordo qual saía vencedor, mas não me surpreenderia que fosse Eusébio. A despeito dos seus joelhos arruinados, ainda tinha um tiro de canhão.”
A época 1982/83 foi dourada: título nacional e vitória no Jamor, contra o FC Porto, com golo de Carlos Manuel. Pecou-se apenas na final da Taça UEFA, contra o Anderlecht. João Alves jogou apenas meia hora naquelas duas partidas, mas não deixou que isso lhe afetasse o juízo sobre o homem que ajudou a revolucionar o futebol português. Olha para ele como um mentor. Tanto é assim que, alguns anos depois, João Alves era treinador do Boavista e saiu na rifa a Fiorentina na Taça UEFA. O já ex-jogador viajou até Itália para bater bolas com o seu treinador.
“Fui ver a Fiorentina e almocei com ele, em Roma. Ele abriu-me todos os pormenores desse adversário”, conta João Alves. “Ele estava a treinar a Roma. Foi muito importante e o Boavista, por coincidência ou não, passou a eliminatória, nas grandes penalidades, no Estádio do Bessa.” Sven-Göran Eriksson como olheiro do Boavista… Quem diria, hein?
Na segunda época no Benfica, “Svennis” conquistou apenas o campeonato, mas teve direito a um regresso à infância. Nos quartos de final da Taça dos Campeões Europeus, o sorteio ditou um duelo com o Liverpool de Dalglish, Souness e Rush. “Eu tinha sido adepto do Liverpool na minha juventude. Agora ia ter a hipótese de liderar uma equipa no lendário Anfield”, celebra no seu livro.
Delgado, que tivera pouco antes, no Portimonense, “a sorte” de ser treinado por Artur Jorge calçado com a escola do leste, recorda que o jogo foi preparado ao mais ínfimo detalhe. O nórdico disse tudo, tudo o que aconteceria em campo. “‘Qualquer erro que façamos, eles não perdoam’, disse-nos. ‘O Ian Rush, em quatro, marca três’”, conta o ex-guarda-redes. Rush resolveu em Anfield e na Luz deu goleada para os ‘reds', que seriam campeões europeus nessa temporada.
“Havia grandes esperanças em chegar à final e foi como se o balão do clube esvaziasse”, reflete na autobiografia, longe de sonhar com o que aconteceria em 1990. “Bem como o meu. Comecei a pensar se já não teria chegado o mais longe que era possível com o Benfica.”
Pouco tempo depois, a seguir ao treino, seguia no carro quando um taxi se colou a ele, buzinando e exibindo um eloquente festival de luzes. Pediram a Eriksson que encostasse. Era um empregado da embaixada de Itália em Lisboa, com uma mensagem: “Dino Viola quer falar consigo”. Era o presidente da AS Roma e o telefonema deu-se quando “Svennis” chegou a casa.
E assim começou a traçar-se o fim da primeira passagem de Eriksson no Benfica.