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Cuidadores informais já com estatuto mas ainda sem direitos. "Continuamos no vazio". Reportagem da jornalista Sandra Afonso
Clique na imagem para ouvir a reportagem na íntegra. Foto: Olímpia Mairos/RR

Reportagem Renascença

Cuidadores informais já com estatuto mas ainda sem direitos. "Continuamos no vazio"

02 mar, 2020 • Sandra Afonso , André Peralta (sonorização)


Enquanto o Governo continua a fazer contas para pôr em prática o Estatuto do Cuidador Informal, mais de 800 mil pessoas no país vivem diariamente com uma significativa sobrecarga física, psíquica, social e financeira – como é o caso de Ester, que abdicou de tudo para cuidar do marido durante quatro anos, sem quaisquer apoios.

Pedro pediu a Ester que não o deixasse no hospital, "porque morria lá”. Quando foi para casa, “ele estava preso à cama, já vinha com feridas, escaras, no hospital não se sentava, diziam que não se justificava”.

Ester fala à Renascença com dificuldade, com a voz embargada, num choro contínuo, mas não pára. Tem uma história para contar.

Hoje faria tudo igual, garante. Acredita que o marido “ficou feliz por ir para casa e em casa reagiu de uma maneira diferente do que no hospital”. Mas não há decisões sem consequências. Ester foi obrigada a deixar o emprego para apoiar o marido. Não teve direito a subsídio, viu a baixa psiquiátrica rejeitada pela junta médica e todas as portas fechadas porque tinha uma casa paga.

Enquanto o Governo continua a fazer contas, mais de 800 mil pessoas no país vivem diariamente com uma significativa sobrecarga física, psíquica, social e financeira – são os cuidadores informais.

O alerta é da Associação Nacional que os representa, pessoas que diariamente substituem o Estado num trabalho invisível e quase sempre solitário. Já têm Estatuto, mas está vazio. Ficou por fazer a regulamentação, o que para já deixa tudo praticamente na mesma.

No último dia do prazo para publicar a regulamentação, 120 dias depois de aprovado o Estatuto do Cuidador Informal, a 20 de janeiro deste ano, o Governo publicou uma portaria, mas “foi apenas para cumprir, do ponto de vista formal, o tal prazo”, diz a advogada Filomena Girão à Renascença.

“Na matéria difícil, que visa a proteção dos direitos do trabalhador que é ao mesmo tempo cuidador informal, que regula o seu direito ao descanso, o seu direito a formação, o seu direito à informação sobre a pessoa cuidada, que regula o seu direito aos tais benefícios que apenas aparecem nos projetos-piloto e que são pouco conhecidos ainda nos tais 30 conselhos, relativamente a toda essa matéria continuamos no vazio”, explica a advogada. “Essa regulamentação essencial ficou por fazer."

Neste momento não há qualquer prazo ou data indicativa. À Renascença, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garante apenas "para breve", sem especificar datas, a publicação da portaria que define os 30 concelhos com projetos-piloto e o montante do subsídio. Também não existe indicação sobre quando é que a medida vai ser alargada a todo o país.

A associação nacional lamenta que partidos e Governo tenham deixado cair o tema. Maria dos Anjos Catapirra, vice-presidente, acredita que “os cuidadores informais serviram para os políticos todos, sem exceção, na antiga legislatura" -- mas nada mais.

"Foi ótimo! Toda a gente fez muitas entrevistas, muitos eventos, toda a gente fez decretos-lei, surgiu uma legislação aprovada por unanimidade pelos partidos todos, saiu a lei e ponto final nos cuidadores informais.”

Não é a primeira vez que os direitos dos cuidadores informais são deixados na gaveta pelo executivo. O estudo pedido pelo Governo para preparar o Estatuto esteve meses nos gabinetes ministeriais e só chegou ao Parlamento quando o Bloco de Esquerda pediu os resultados, no início de 2018.

Os peritos concluíram que o trabalho dos cuidadores informais vale 4 mil milhões de euros por ano, cerca de 330 milhões de euros por mês. O dinheiro continua a ser poupado ao erário público.

"Os cuidadores informais serviram para os políticos todos, sem exceção, na última legislatura. Toda a gente fez muitas entrevistas, muitos eventos, toda a gente fez decretos-lei, surgiu uma legislação aprovada por unanimidade pelos partidos todos, saiu a lei e ponto final nos cuidadores informais"

Ester não voltou a trabalhar, “mesmo quando o subsídio foi cortado”. Estava praticamente 24 sobre 24 horas a acompanhar o marido, doente oncológico em fase terminal, e limitada aos 600 euros que Pedro recebia para cobrir todas as despesas. “No caso dele já não era mais comida; eram fraldas, pomadas para o corpo, resguardos...”, recorda Ester à Renascença.

Mas não é só um problema de gestão financeira. Muitas vezes fica também em causa o próprio emprego do cuidador. À Associação Nacional de Cuidadores Informais chegam inúmeros testemunhos e pedidos de ajuda: “O que é que eu faço agora, porque se faltar ao emprego sou despedida e não tenho leis laborais que me apoiem nestas circunstâncias?"

Maria do Anjos admite que não sabe o que responder. “Não tenho resposta, porque tudo aquilo que pensávamos que ia surgir em termos de apoio de legislação laboral em 120 dias ainda não surgiu.”

Para quem trabalha e se vê confrontado com a necessidade de cuidar de um doente ou idoso, hoje existem duas soluções: “Ou têm dinheiro e põe alguém a tomar conta dele durante o dia para continuarem a trabalhar, ou param de trabalhar e ficam sem dinheiro. Não há um meio-termo.”

Por outro lado, “as baixas médicas por assistência à família em adultos são períodos curtos e se forem prolongadas as pessoas não têm remuneração”, lembra Maria dos Anjos Catapirra.

Com uma baixa por assistência à família, o emprego não fica em risco, mas não há direito a comparticipação. Quando os cuidadores se apresentam eles próprios como doentes, com direito a baixa remunerada, ela acaba muitas vezes questionada na junta médica.

Foi o que aconteceu com Ester. O painel de médicos da Junta disse-lhe “que não tinha motivo para estar com depressão, porque se tinha depressão era bom que fosse trabalhar que curava”. Agora admite que não teve discernimento para questionar o que ouviu, embora tenha colocado a questão: “Como é que vou sair para trabalhar sem saber se vou voltar para casa e encontrar o meu marido vivo?”

Maria dos Anjos Catapirra acredita que as decisões dependem muito “das análises dos médicos que estão nessa Juntas Médicas" e nesse ponto "há pouca sensibilidade".

"Eu acho que nós somos números. Se entrarmos num terceiro ou quarto lugar e eles já tiverem cedido as baixas todas deixamos de ter direitos, porque eles não vão ver os casos clínicos um a um”, denuncia a vice-presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais.

"Se houvesse uma criança não sei se ia conseguir gerir dessa maneira. Se a situação se tivesse arrastado por mais tempo eu não sei como ia gerir, eu estava a levar um dia de cada vez, ou um minuto de cada vez ...Se o Pedro continuasse aqui eu não sei como seria hoje, não sei se a situação estaria tão controlada"

Mas porque é que nada mudou ainda desde a aprovação do Estatuto? "Porque os cuidadores, na maioria das situações, ainda são obrigados a terem baixa para poderem acompanhar as pessoas de quem cuidam", responde a advogada Filomena Girão. "Nós temos muitas vezes situações em que a baixa, inclusive, é reconhecida por um profissional, às vezes mais qualificado do que o profissional que integra a dita comissão; essa baixa pode ser posta em questão e é de facto muitas vezes.”

Quem se considerar vítima de injustiça pode apenas reclamar e recorrer da decisão. Mas nada disto apaga o facto de que “se está a pôr em causa a declaração de um profissional, no caso médico, que atestou que aquela pessoa está doente e incapaz para a prestação do trabalho”, sublinha a advogada. “O que decorre da lei é legal”, mas também “causa aqui um constrangimento ético grande, que deve preocupar-nos a todos”.

A Renascença confrontou a tutela com estas críticas, mas o Ministério da Saúde remeteu para as Administrações Regionais de Saúde. Até à hora de fecho desta reportagem, nenhuma das cinco ARS do país respondeu aos pedidos de reação nem enviou dados sobre reclamações e recursos entregues relativos a decisões de Juntas Médicas.

Ester apresentou o pedido para nova junta, mas com a demora dos serviços, quando recebeu nova data já as circunstâncias tinham mudado. Agora sente que os 22 anos de descontos do marido foram ignorados e que, quando mais precisou, foi abandonado pelo Estado de previdência. “Ele precisava que eu estivesse com ele, eu sei que isso fez diferença nos últimos dias da vida dele e fico triste porque... Ele teve apoio, mas não foi apoiado pelo Estado!”

Em casa de Pedro e Ester não havia um plano B, a gestão era diária. Agora, Ester admite que noutras circunstâncias não seria possível cumprir o pedido do marido de ficar em casa.

“Se houvesse uma criança não sei se ia conseguir gerir dessa maneira. Se a situação se tivesse arrastado por mais tempo eu não sei como ia gerir, eu estava a levar um dia de cada vez, ou um minuto de cada vez ...Se o Pedro continuasse aqui eu não sei como seria hoje, não sei se a situação estaria tão controlada. Acho que era uma preocupação que talvez fosse desnecessária se as coisas fossem mais corretas.”

Ester ainda procurou outras ajudas públicas e privadas para acompanhar o marido em casa, mas não foi considerada elegível porque tinham a casa paga. “Foi das frases que eu mais ouvi entre novembro e dezembro, não podiam fazer mais nada para além daquilo que já faziam, que ainda não percebi o que é que fizeram, para além dos cuidados no hospital.”

Fica no ar outra questão que ainda promete gerar discussão: mesmo depois de regulamentado o Estatuto, que serão os limites dos apoios?

O Governo não avançou à Renascença valores nem o orçamento previsto para esta medida. No entanto, a Associação acredita que deverão ser reduzidos. As verbas atribuídas hoje às pessoas cuidadas rondam os 100 euros, 180 no máximo. Por outro lado, só estão habilitados a subsídio praticamente os familiares mais diretos e, mesmo estes, só se tiverem rendimentos mínimos.

Para a Associação Nacional, “as atribuições de subsídios acabam por ser praticamente para indigentes, porque se houver uma família em que o marido trabalhe, por exemplo, o Subsídio já não funciona. Portanto, não vai ser uma verba muito exagerado, de certeza que não vamos ofender muito o orçamento do estado, conclui Maria dos Anjos.

A história de Ester e Pedro multiplica-se no país, com outros nomes, outras doenças, outras idades, os mesmos problemas. São os chamados cuidadores informais, aqueles que estão em casa a cuidar de doentes crónicos, crianças com patologias graves, pessoas com demência ou idosos. Fazem o trabalho do Estado, à porta fechada. E ainda sem direitos.
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  • ana bela ferrao
    02 mar, 2020 FERNÃOFERRO 13:58
    Não á direito estão a fazer pouco dos pobres eu estou em casa preciso do meu marido para tudo e ele tambem é doente oncològico tambem lhe custa muito tratar de mim mas com os 105 euros que eu tenho para o cuidador não concigo arranjar ninguem por este preço ,está cada vez mais complicado vejam por favor estas cituaões