09 jan, 2025 • Pedro Vaz Patto
Na sua nota recentemente publicada, a Associação dos Juristas Católicos salienta o contraste entre os propósitos de alteração da legislação portuguesa relativa ao aborto, no sentido de o facilitar ainda mais, e o apelo do Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz: "…faço apelo a um firme compromisso de promover o respeito pela dignidade da vida humana, desde a conceção até à morte natural, para que cada pessoa possa amar a sua vida e olhar para o futuro com esperança, desejando o desenvolvimento e a felicidade para si e para os seus filhos."
No documento em que proclama o Ano Jubilar (“bula”), o Papa também fala da preocupante queda da natalidade como sinal de perda de esperança. E afirma: "Olhar o futuro com esperança equivale a ter também uma visão da vida carregada de entusiasmo para a transmitir."
A este respeito, retive ainda esta afirmação de Luigino Bruni, num seu artigo no jornal Avvenire (de 24/11/2024): "O primeiro sinal – e o decisivo – de que uma civilização começou o seu declínio é a ausência de crianças das nossas cidades. O índice de natalidade vale mil vezes mais do que o PIB, porque podemos reduzir o PIB (talvez anulando a produção de armas e de jogos de azar) e viver bem ou melhor; mas, quando das nossas casas desaparecem as crianças, apenas podemos chorar ou rezar".
A atenção primordial de políticos de todos os quadrantes deveria focar-se, pois, no apoio à maternidade e paternidade, que hoje e entre nós se deparam com graves obstáculos, o primeiro dos quais talvez seja o do acesso à habitação.
Dos vários projetos em discussão constam o alargamento (para doze ou catorze semanas) dos prazos de gestação dentro dos quais será legal a prática do aborto (invocando o facto de o prazo atual de dez semanas ser mais reduzido do que o de outros países, forçando mulheres a deslocar-se a esses países), a eliminação do período de reflexão exigido pela lei atual (com o argumento de que se trata de uma medida paternalista que menoriza a mulher) e a limitação do direito à objeção de consciência (embora não o dizendo claramente e falando em “densificação”).
Nenhum desses argumentos é válido.
Tem-se verificado noutros países o pretendido alargamento dos prazos em questão. Vem em evidência, também neste caso, o fenómeno da chamada “rampa deslizante”: isto é, uma vez derrubada a barreira da sua ilegalização, são progressivamente derrubadas as maiores ou menores limitações à prática do aborto. Em França também se seguiu o caminho que agora se pretende seguir: em 2001 o prazo foi alargado para as doze semanas e em 2021 o prazo foi alargado para as catorze semanas (e foi também eliminado o período de reflexão).
Alega-se, para justificar o alargamento desse prazo, que são muitas as mulheres portuguesas que, já depois das dez semanas de gravidez, se deslocam a Espanha para aí abortar, onde o prazo é de catorze semanas. Por esta ordem de ideias, se em Portugal o prazo se vier a fixar nas catorze semanas, também haverá quem venha a praticar o aborto em países onde o prazo é maior, como a Dinamarca, onde é de dezoito semanas, ou no Reino Unido, onde é de vinte e quatro semanas. E eis-nos em plena “rampa deslizante”: novos alargamentos de prazos se sucederiam…
Estas discussões sobre prazos revelam bem como qualquer deles é arbitrário. É arbitrário fixar uma linha a partir da qual a vida humana (porque de vida humana se trata, inquestionavelmente) deixa de merecer proteção, ou passa a merecer proteção.
De qualquer modo, o alargamento do prazo há de traduzir-se sempre numa forma de facilitar o aborto e numa menor proteção do nascituro. E também numa menor proteção da mulher grávida, também ela vítima do aborto.
O parecer do Conselho de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, relativo ao projeto do Partido Socialista, critica esse alargamento e cita, quanto à proteção do embrião e do feto, o parecer n.º 119 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, de 2022: «Embora o desenvolvimento embrionário e epigenético ocorra de forma contínua, e sem interrupções nem momentos privilegiados, a 10.ª semana foi escolhida por representar, no conhecimento científico, um limiar no desenvolvimento fetal cujo sistema nervoso central não estaria ainda suficientemente desenvolvido para poder haver sensibilidade e dor fetal aquando da IVG, química ou cirúrgica».
Na verdade, há estudos que apontam no sentido de que às doze semanas de gravidez poderá verificar-se já alguma sensibilidade do feto à dor (ver, por exemplo, o estudo de Stuart Derbyshire e John Brockman, “Reconsidering Fetal Pain”, in Journal of Medical Ethics, acessível em https://doi.org/10.1136/ medethics-2019-105701). Apesar de este não ser um argumento decisivo (pois não é a sensibilidade à dor que, obviamente, torna a vida humana digna de proteção, senão bastaria anestesiar a vítima para que tal não sucedesse), ele não deixa de ser relevante na perspetiva da proteção do embrião e do feto, que o regime vigente não afasta em absoluto (até por imposição do princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição).
Quanto à proteção da mulher grávida, afirma esse parecer da Ordem dos Médicos: "(…) todos os dados científicos sobre a gravidez e a saúde da mulher grávida são claramente favoráveis a uma melhor saúde quanto menor for o tempo de gestação que termina abruptamente, pelo que a ciência médica deverá recomendar a terminação da gravidez o mais precocemente possível e contrariar o alargamento de prazos".
Afirma ainda esse parecer que a média de idade gestacional em que se pratica o aborto em Portugal tem-se mantido estável nas sete semanas, "pelo que não é científica e deontologicamente sustentável, e face ao panorama atual, a necessidade de alargamento dos prazos".
A eliminação do período de reflexão também suscita a oposição desse parecer, o qual afirma não se tratar de uma forma de paternalismo, mas de uma salvaguarda dos direitos da mulher e de uma exigência de um consentimento informado. Quem lida de perto com essas situações (designadamente as associações de apoio à vida e às mulheres grávidas) sabe como com frequência as mulheres que pedem o aborto o fazem sob fortes pressões da família e do pai do nascituro.
Mas talvez o que de mais grave pode decorrer da eventual aprovação dos projetos em causa é a limitação do direito à objeção de consciência. Essa limitação também é criticada nesse parecer da Ordem dos Médicos.
Vem sendo sustentado que o direito à objeção de consciência não pode servir para negar o direito ao aborto. Ou seja: esse pretenso direito ao aborto deveria sobrepor-se ao direito à objeção de consciência.
O direito à objeção de consciência está consagrado no artigo 41º, nº 6, da Constituição portuguesa. Trata-se de um corolário da liberdade de consciência, religião e culto, a qual se caracteriza como “inviolável” no nº 1 do mesmo artigo, e um corolário do respeito pela integridade moral das pessoas, que o artigo 25º, nº 1, do mesmo diploma também define como “inviolável”.
Por aqui pode aferir-se do peso e da importância relativos deste direito no quadro constitucional. Não será exagero atribuir aos direitos de respeito pela integridade moral e pela liberdade de consciência e religião um peso relativo no confronto com outros direitos e liberdades (com assento constitucional ou não) só ultrapassado pelo direito à vida, pressuposto de todos os outros direitos. Os domínios da integridade moral e da consciência situam-se na esfera mais íntima, por um lado, e de maior relevo no plano das opções existenciais, por outro lado, da pessoa. E daí a sua indeclinável importância.
Nada disto se pode afirmar a respeito do pretenso “direito ao aborto”, que não tem consagração constitucional. Os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional português (n.ºs 25/84, 85/85, 288/98 e 617/06) que (sempre com um significativo número de votos de vencido) aceitaram a constitucionalidade da legalização do aborto em determinadas condições e circunstâncias nunca reconheceram um pretenso direito ao aborto como direito fundamental. Analisaram a questão na perspetiva da política criminal (da simples descriminalização) e de alguma limitação ao princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, mas nunca ao ponto de elevar o direito ao aborto ao nível de direito fundamental.
O projeto de lei apresentado por deputados do Partido Socialista altera a redação do artigo 6.º da Lei n.º 16/2017, de 17 de abril, o qual passaria a estatuir que o exercício do direito individual à objeção de consciência não pode pôr em causa o direito à liberdade das mulheres que decidem interromper a gravidez (n.º 1) e que o acesso ao direito à interrupção voluntária da gravidez e à qualidade do serviço de saúde prestado não pode ser afetado pelo exercício individual do direito à objeção de consciência (n.º 5). Daqui poderá retirar-se a conclusão de que, no limite, a um qualquer médico ou profissional de saúde poderá ser imposta a prática de um aborto, quando não existam alternativas e quando essa seja a única forma de garantir à mulher o exercício desse pretenso direito. Não se trata, pois, de "densificar o direito à objeção de consciência", trata-se de o limitar gravemente.
Essa limitação contraria a Resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa n.º1763 (2010), que estatui: "1- Nenhum hospital, estabelecimento ou pessoa pode ser sujeito a pressões, ser responsabilizado ou sofrer qualquer tipo de discriminações pela sua recusa de realizar, acolher, colaborar em ou submeter-se a um aborto ou uma eutanásia, ou pela sua recusa de realizar qualquer intervenção destinada a provocar a morte de um feto ou de um embrião humano, sejam quais forem as suas razões".
Por outro lado, e ao contrário do que resulta desta Resolução, o projeto do Partido Socialista (no artigo 6.º, n.ºs 1 e 4, da redação alterada da Lei n.º 16/2017, de 17 de abril) rejeita a dimensão institucional do direito à objeção de consciência e pretende reduzi-lo a um direito puramente individual.
Ora, a liberdade religiosa (e a liberdade de consciência a ela estreitamente ligada) tem uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão comunitária e institucional.
Titulares do direito respetivo não são apenas pessoas, mas também comunidades religiosas. É o que decorre do artigo 41.º, n.º 4, da Constituição portuguesa e do artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É verdade que a consciência assume uma dimensão fundamentalmente pessoal. Mas por detrás de qualquer instituição estão fins que refletem opções éticas (de consciência, portanto) das pessoas que a iniciaram e que prosseguem esses fins em conjunto, como obra coletiva que tem uma identidade própria e inconfundível ligada a esses fins e a essas opções éticas. Neste sentido, deve dizer-se que atenta contra essa dimensão coletiva e institucional da liberdade de consciência obrigar um estabelecimento de saúde a autorizar que nele se pratiquem atos contrários, no plano ético, ao ideário que está na base da sua fundação e que inspira toda a sua atividade. Isso sucederá com a prática do aborto ou da eutanásia num estabelecimento de saúde católico, ou num estabelecimento de saúde que, não sendo confessional, se rege pelas tradicionais regras de deontologia médica contrárias a tais práticas.
Nenhuma dos motivos invocados justifica, pois, a aprovação de projetos de lei que visam facilitar ainda mais a prática do aborto.
Há que facilitar mais o acolhimento da vida, não a prática do aborto. Porque a vida é sempre uma incomensurável riqueza.