08 nov, 2024 • Pedro Vaz Patto
Quem tenha acompanhado as discussões que levaram à aprovação do regime legal do aborto hoje vigente entre nós certamente recordará o cuidado com que os partidários dessa legalização apresentavam os seus objetivos (e admito que muitos o faziam de boa fé).
Falava-se em “despenalização”, e não em “direito ao aborto”. Ouvia-se dizer: «eu sou contra o aborto, todos somos contra o aborto, só não queremos a penalização das mulheres». O aborto era visto como um mal (até para a própria mulher grávida) e a sua legalização um mal necessário para evitar a sua clandestinidade. Não se pretendia promover esse mal e, por isso, ele devia ser “legal, seguro e raro”.
A vontade de reduzir a prática do aborto traduzia-se na sua limitação às primeiras semanas de gravidez e na obrigatoriedade de um período de reflexão que evitasse decisões precipitadas.
Já então se chamava a
atenção para a reduzida eficácia dessas limitações. Mas o que hoje se verifica claramente
é que parece que já se esqueceu essa ideia de que o aborto é um mal a evitar.
Fala-se agora no “direito ao aborto” como direito fundamental. Já não se
pretende limitar a sua prática, mas antes promovê-la. E vem em evidência,
também neste caso, o fenómeno da chamada “rampa deslizante”: isto é, uma vez
derrubada a barreira da sua ilegalização, são progressivamente derrubadas as
maiores ou menores limitações à prática do aborto. Qualquer propósito de
ampliar essas limitações é visto como um retrocesso inadmissível, que nem
sequer pode ser discutido. Mas não assim quando se trata de facilitar e
promover a prática do aborto.
Isso mesmo revelam os projetos de alteração do regime legal do aborto agora em discussão entre nós. Pretende-se, desde logo, alargar o prazo dentro do qual é legal a prática do aborto.
O projeto do Partido Socialista fixa tal prazo (que é atualmente de 10 semanas) nas 12 semanas de gravidez e o projeto do Bloco de Esquerda fixa tal prazo nas 14 semanas de gravidez. Em França também se seguiu o caminho que agora se pretende seguir (o da tal “rampa deslizante”): em 2001 o prazo foi alargado para as 12 semanas e em 2021 o prazo foi alargado para as 14 semanas (e foi também eliminado o período de reflexão).
Alega-se, para justificar o alargamento desse prazo, que são muitas as mulheres portuguesas que, já depois das 10 semanas de gravidez, se deslocam a Espanha para aí abortar, onde o prazo é de 14 semanas. Por esta ordem de ideias, se em Portugal o prazo se vier a fixar nas 14 semanas, também haverá quem venha a praticar o aborto em países onde o prazo é maior, como a Dinamarca, onde é de 18 semanas, ou no Reino Unido, onde é de 24 semanas. E eis-nos em plena “rampa deslizante”: novos alargamentos de prazos se sucederiam…
Estas discussões sobre prazos revelam bem como qualquer deles é arbitrário. É arbitrário fixar uma linha a partir da qual a vida humana (porque de vida humana se trata, inquestionavelmente) deixa de merecer proteção, ou passa a merecer proteção.
De qualquer modo, o alargamento do prazo há de traduzir-se sempre numa forma de facilitar o aborto e numa menor proteção do nascituro. E também numa menor proteção da mulher grávida, também ela vítima do aborto.
O parecer do Conselho de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, relativo ao projeto do Partido Socialista, critica esse alargamento e cita, quanto à proteção do embrião e do feto, o parecer n.º 119 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, de 2022: «Embora o desenvolvimento embrionário e epigenético ocorra de forma contínua, e sem interrupções nem momentos privilegiados, a 10.ª semana foi escolhida por representar, no conhecimento científico, um limiar no desenvolvimento fetal cujo sistema nervoso central não estaria ainda suficientemente desenvolvido para poder haver sensibilidade e dor fetal aquando da IVG, química ou cirúrgica».
Na verdade, há estudos que apontam no sentido de que às 12 semanas de gravidez poderá verificar-se já alguma sensibilidade do feto à dor (ver, por exemplo, o estudo de Stuart Derbyshire e John Brockman, “Reconsidering Fetal Pain”, in Journal of Medical Ethics).
Apesar de este não ser um argumento decisivo (pois não é a sensibilidade à dor que, obviamente, torna a vida humana digna de proteção, senão bastaria anestesiar a vítima para que tal não sucedesse), ele não deixa de ser relevante na perspetiva da proteção do embrião e do feto, que o regime vigente não afasta em absoluto (até por imposição do princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição).
Quanto à proteção da mulher grávida, afirma esse parecer da Ordem dos Médicos: «(…) todos os dados científicos sobre a gravidez e a saúde da mulher grávida são claramente favoráveis a uma melhor saúde quanto menor for o tempo de gestação que termina abruptamente, pelo que a ciência médica deverá recomendar a terminação da gravidez o mais precocemente possível e contrariar o alargamento de prazos».
Afirma ainda esse parecer que a média de idade gestacional em que se pratica o aborto em Portugal tem-se mantido estável nas sete semanas, «pelo que não é científica e deontologicamente sustentável, e face ao panorama atual, a necessidade de alargamento dos prazos».
A
eliminação do período de reflexão (que consta do projeto do Partido Socialista)
também suscita a oposição desse parecer, o qual afirma não se tratar de uma
forma de paternalismo (como se alega na exposição de motivos desse projeto),
mas de uma salvaguarda dos direitos da mulher e de uma exigência de um
consentimento informado.
Mas
talvez o que de mais grave pode decorrer da eventual aprovação desse projeto é
a grave limitação do direito à objeção de consciência (que ninguém punha em
causa quando se começou a discutir a legalização do aborto entre nós). Essa
limitação também é criticada nesse parecer da Ordem dos Médicos.
Vem
sendo sustentado que o direito à objeção de consciência não pode servir para
negar o direito ao aborto e que, no limite, a um qualquer médico ou
profissional de saúde poderá ser imposta a prática de um aborto, quando não
existam alternativas e quando essa seja a única forma de garantir à mulher o
exercício desse pretenso direito. Ou seja: esse pretenso direito ao aborto
deverá sobrepor-se ao direito à objeção de consciência. Essa sobreposição não
tem, porém, fundamento ético e jurídico. Mas é esse princípio que, de forma
inequívoca, embora algo sub-reptícia, decorre do projeto apresentado por
deputados do Partido Socialista.
O
direito à objeção de consciência está consagrado no artigo 41º, nº 6, da
Constituição portuguesa. Trata-se de um corolário da liberdade de consciência,
religião e culto, a qual se caracteriza como “inviolável” no nº 1 do mesmo
artigo, e um corolário do respeito pela integridade moral das pessoas, que o
artigo 25º, nº 1, do mesmo diploma também define como “inviolável”.
Por aqui pode aferir-se do peso e da importância relativos deste direito no quadro constitucional. Não será exagero atribuir aos direitos de respeito pela integridade moral e pela liberdade de consciência e religião um peso relativo no confronto com outros direitos e liberdades (com assento constitucional ou não) só ultrapassado pelo direito à vida, pressuposto de todos os outros direitos. Os domínios da integridade moral e da consciência situam-se na esfera mais íntima, por um lado, e de maior relevo no plano das opções existenciais, por outro lado, da pessoa. E daí a sua indeclinável importância. Nada disto se pode afirmar a respeito do pretenso “direito ao aborto”, que não tem consagração constitucional.
Em
conclusão, o que há a fazer com
urgência e determinação não é impedir que nasçam crianças (a maior das
riquezas, como disse o Papa Francisco em Timor-Leste) promovendo o aborto, é
remover os obstáculos que hoje tanto dificultam a maternidade e a paternidade.