08 out, 2024 • Pedro Vaz Patto
Numa das suas últimas intervenções sobre a guerra que grassa na Terra Santa, o Papa Francisco falou da imoralidade de uma guerra supostamente defensiva que não segue um critério de proporcionalidade, isto é, que se serve de meios mais gravosos do que os necessários para repelir uma agressão. Deu a entender claramente que esse critério não está a ser respeitado em Gaza. Tal parece evidente quando consideramos as dezenas de milhar de vítimas civis inocentes (muitos delas crianças) ou a destruição de mais de metade de casas de habitação e escolas. A extensão da guerra ao Líbano, também com grande número de vítimas e danos civis, continua e agrava essa desproporcionalidade.
Distingue-se tradicionalmente, nos âmbitos da ética e do direito, entre as condições de legitimidade, ou ilegitimidade, de uma guerra que decorrem da sua causa e motivação (o “ius ad bellum”) e as condições de legitimidade (ou ilegitimidade) de uma guerra que decorrem dos meios empregues (o “ius ad bello”), para além da eventual legitimidade dessa causa ou motivação. Ou seja: uma guerra supostamente defensiva não justifica o emprego de todos os meios que sejam necessários para assegurar, ou mesmo facilitar, a vitória. Neste, como em muitos outros casos, os fins não justificam os meios.
Uma primeira questão a considerar quando se afere a legitimidade de uma guerra supostamente defensiva, é a distinção entre uma reação (legítima) de defesa perante uma agressão que pretende apenas repelir essa agressão, e outra reação (ilegítima) que pretende também retaliar, responder com uma outra agressão (segundo a lógica vingativa do “olho por olho, dente por dente”), ou punir (castigar) o autor da agressão inicial.
A legítima defesa supõe um ataque atual ou iminente. Assim o exigem quer a generalidade dos códigos penais, quer o direito internacional da guerra. A tentativa de alargamento da legítima defesa à prevenção de um ataque futuro (não atual ou iminente), que foi invocada para legitimar a guerra do Iraque, é de rejeitar (como o faz o magistério da Igreja Católica, de que se fez eco São João Paulo II a propósito dessa guerra e se faz eco a encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco), desde logo porque daria origem a ilimitadas arbitrariedades, pois será sempre possível invocar possíveis ataques futuros sem dados objetivos para tal (como sucedeu com as inexistentes “armas de destruição massiva” invocadas para justificar tal guerra).
À luz deste critério, não são legítimas mortes provocadas (como aquelas a que temos assistido recentemente no Médio Oriente) de dirigentes de forças inimigas (mesmo que sejam organizações terroristas) em locais e ocasiões que não representam ataques atuais ou iminentes. Não as justifica a prevenção de supostos ataques futuros. Não as justifica a punição dessas pessoas, como se de uma pena de morte de aplicação extra-judicial se tratasse. Não as justifica o propósito de, simplesmente, amedrontar essas forças inimigas. Na perspetiva da defesa (diferente da perspetiva da retaliação ou vingança), essas mortes serão quase sempre inúteis, porque esses dirigentes serão substituídos e elas contribuem sobretudo para incitar a revolta e o ódio dessas forças inimigas e de quem as apoia.
Para justificar a ocorrência de vítimas civis inocentes (inocentes porque alheias ao ataque que se pretende repelir), alega-se que se trata de danos colaterais não diretamente queridos, o que será muito diferente da morte dessas vítimas intencionalmente provocada. Mas o tradicional princípio ético do “duplo efeito”, que admite a ocorrência de danos indiretos não queridos como consequência necessária de um ato bom diretamente pretendido, não deixa de exigir a proporcionalidade entre as consequências boas desse ato diretamente pretendido e as consequências más não queridas. Quando está em causa a morte de vítimas inocentes, a proporcionalidade não depende do maior ou menor número destas (cada uma delas têm um valor “único e irrepetível”), pode dizer-se que a morte de uma pessoa inocente é sempre desproporcional em relação a quaisquer vantagens de uma ação militar integrada numa guerra defensiva. A tolerância perante a ocorrência de vítimas inocentes como consequência necessária e previsível (não acidental e imprevisível) de uma ação militar não será tão condenável como a intenção direta de as provocar, mas não deixa de ser condenável, no plano ético e no plano jurídico (numa perspetiva de direito penal, não estaremos perante uma atuação com dolo direto, mas estaremos, mesmo assim, perante uma atuação com dolo necessário).
Alega-se que essas vítimas inocentes são instrumentalizadas pelo inimigo como “escudos humanos” (o que, no caso da estratégia do Hamas, será verdade nalguns casos, mas não certamente em todos os dos habitantes de Gaza) e que não pode haver cedências a essa chantagem. Mas o crime de quem procede a tal instrumentalização não exime de responsabilidade de quem coloca objetivos militares, porventura legítimos, acima da vida dessas vítimas inocentes. Não é lícito reagir a um crime gravíssimo com outro crime, ainda que de menor gravidade. Renunciar a essa reação não é ceder a uma chantagem, é colocar a inviolabilidade da vida humana inocente acima de qualquer estratégia militar. É evitar que sejam essas vítimas inocentes a pagar pela diabólica estratégia de quem as instrumentaliza.
Com todas estas limitações no plano ético e jurídico, poderá dizer-se que é difícil vencer uma guerra em legítima defesa. Também por isso, importa procurar, sempre e incansavelmente, outras formas de resolução de conflitos e até de resistência perante a injustiça, e recorrer à guerra apenas como o último dos recursos. Os dirigentes políticos mundiais pareciam ter aprendido essa lição depois da II Guerra Mundial (por isso, nasceram a Organização da Nações Unidas e a União Europeia). Importa que não esqueçam agora essa lição.