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Opinião de José Pedro Teixeira Fernandes

​O dia em que a América vai virar a página

19 jan, 2021 • José Pedro Teixeira Fernandes (*) • Opinião de Opinião


Dia 20 de janeiro. Para a maioria dos americanos é um enorme alívio assistir a este virar de página na política do país e ao encerrar de um período extraordinariamente tumultuoso.

1. A América e o mundo têm no dia 20 de Janeiro de 2021 uma data imbuída de grande simbolismo político. É o fim do conturbado mandato de Donald Trump, sendo também o dia em que um novo presidente, Joe Biden (Joseph Robinette Biden Jr.), toma posse à frente do governo dos EUA. Para a maioria dos americanos é um enorme alívio assistir a este virar de página na política do país e ao encerrar de um período extraordinariamente tumultuoso, em particular o ocorrido entre a eleição presidencial de 3 Novembro e a invasão do Capitólio por manifestantes radicais pró-Trump, a 6 de Janeiro de 2021.

Ficaram as marcas de uma contestação reiterada e sem precedentes dos resultados eleitorais feita por Donald Trump, a qual prejudicou seriamente a imagem da América como modelo de democracia plural e de participação cívica, uma das mais apreciadas facetas do seu soft power. A expectativa agora é do restaurar dessa imagem e da realização de grandes mudanças em múltiplas áreas que vão do ambiente (regresso ao Acordo de Paris) aos direitos dos afro-americanos, passando pela recuperação da saúde pública e da economia, ambas duramente afectadas pela pandemia da covid-19. A expectativa é também que serão fechadas as fracturas que se instalaram na sociedade norte-americana após quatro anos de governo de facção de Donald Trump, que apenas se preocupou com a América que o elegeu.

Um caso que deverá merecer particular atenção são as políticas de identidade que tiveram um efeito altamente fragmentador

2. Para o sucesso da sua presidência, Joe Biden terá de evitar repetir os erros do passado anterior a Donald Trump, que criaram uma engrenagem de fractura e dissensão interna que só favoreceu a ascensão do populismo. Um caso que deverá merecer particular atenção são as políticas de identidade que tiveram um efeito altamente fragmentador. Colocaram a América em guerra consigo própria para (re)definição da sua identidade. Independentemente das boas intenções de dar voz e uma identidade digna aos grupos minoritários e oprimidos - o que é algo eticamente meritório e politicamente progressista -, na prática alimentaram demasiadas vezes radicalismos culturais e políticos, quer dos seus defensores, quer dos seus críticos, que se tornaram fracturas expostas. Mas há também outros erros graves que envenenaram a política da América nas últimas décadas. Ambos os partidos - democratas e republicanos - tornaram-se excessivamente dependentes de campanhas eleitorais caríssimas e de doadores empresariais para as financiar, que naturalmente procuram depois traduzir tais donativos em influência política. Assim, o Partido Republicano é largamente dependente do capitalismo financeiro de Wall Street a par do velho capitalismo da indústria petrolífera. Quanto ao Partido Democrata, está a ficar cada vez mais dependente de Silicon Valley e do grande capitalismo digital, bem como das principais universidades e grupos de media, o que é igualmente problemático. Se o governo de Joe Biden cair no erro de compactuar com os interesses das empresas de Silicon Valley, colocando nas agências governamentais nomes oriundos das mesmas, estará a alimentar o ressentimento contra o establishment que provavelmente explodirá, de uma forma ou de outra, mais à frente. Credibilizará a ideia dos críticos de que está a pagar um favor político ao Twitter, Facebook, Google e Apple, por banirem Donald Trump e outros republicanos das redes sociais na altura da campanha eleitoral e depois desta. Num país cuja história política está indissociavelmente ligada à liberdade, este tipo de censura, feito por empresas privadas sem qualquer tipo de legitimidade democrática, é péssimo para a imagem da América. É bom que o governo de Joe Biden e o Partido Democrata percebam isso rapidamente.

A América vai finalmente virar a página política, mas os seus problemas mais profundos não se irão dissipar apenas por ter mudado de presidente

3. No plano externo, as tarefas do governo de Joe Biden não irão ser mais fáceis do que as delicadas questões que terá de enfrentar a nível interno, quer pela variedade dos problemas, quer pelo seu grau de complexidade. É verdade que a sua actuação terá a boa vontade (tudo indica) dos seus aliados tradicionais da Europa e Ocidente. Para estes últimos, o anunciado regresso a uma relação tradicional de proximidade amistosa, a um multilateralismo no comércio e na política, e um comprometimento com a as questões ambientais globais criaram elevadas expectativas sobre o futuro governo dos EUA. Mas essa será a parte mais fácil. A política externa numa potência global com uma enorme rede de alianças e de interesses estratégicos variados é sempre uma matéria complexa. Ao mesmo tempo é necessário notar que os europeus são uma parte importante dessas alianças, mas com peso relativo a diminuir, pela ascensão da Ásia-Pacífico. Para além disso, para a América, os interesses dos Estados com os quais tem acordos político-militares, não invulgarmente divergem ou até chocam entre si em conflitos concretos que vão emergindo. O Médio Oriente - e o possível regresso ao acordo nuclear com o Irão - é um exemplo maior desse problema e das linhas estratégicas cruzadas. Quase todos os seus aliados árabes sunitas - para além do caso óbvio de Israel -, estão contra o entendimento com o Irão. Não será fácil voltar ao acordo sem levá-los a uma maior proximidade com potenciais rivais, como a Rússia e a China.

4. Para além de tudo o anteriormente apontado, o governo de Joe Biden terá ainda de mostrar no terreno que o regresso do establishment profissional à política externa é mesmo uma mais-valia para a América (e para o mundo) e que é capaz de fazer muito melhor, sem atolar a América num qualquer intervencionismo no exterior, ou abandonar os seus aliados em situações críticas. Donald Trump rodeou-se de um conjunto de conselheiros amadores recrutados na sua família e amigos. A sua política externa foi errática e por vezes totalmente incompreensível na sua lógica estratégica, se é que tinha alguma. Todavia, fez algo que tem o apoio de muitos americanos, incluindo nos eleitores do Partido Democrata: não envolveu a América em conflitos no mundo exterior, retirando-se até de alguns teatros de guerra, do Médio Oriente ao Afeganistão. Por isso, o governo de Joe Biden terá de mostrar inequivocamente que o establishment profissional de política externa - do qual ele próprio é um produto - é muito mais capaz de zelar pelos interesses da América, sem a sobrecarregar indevidamente. Terá de criar uma barreira às tentações de um intervencionismo liberal que, no passado, levou demasiadas vezes os americanos a intervenções duvidosas, desde os Balcãs ao Afeganistão, passando pela desastrosa intervenção militar no Iraque. E terá ainda de resistir à ideia simplista (por vezes também interesseira) da América liberal, de que derrubar ditadores faz as populações do Médio Oriente ou de outra qualquer parte do mundo, irem a correr para instalar uma democracia. No Iraque, no Afeganistão ou na Líbia ainda estamos à espera dela.

Donald Trump rodeou-se de um conjunto de conselheiros amadores recrutados na sua família e amigos

5. Como potência global, o maior problema da América de hoje é o dos custos crescentes, internos e externos, para se manter sem rival à altura. Desde o final II Guerra Mundial, a presença dos EUA no mundo tornou-se um motivo de orgulho para os norte-americanos, mas também foi extraordinariamente benéfica para o país. Permitiu-lhe obter uma influência ímpar na política e economia mundiais, da qual foram retiradas amplas vantagens. Todavia, a história mostra que a posição de supremacia das grandes potências não é eterna e está sujeita a quedas, mais lentas ou mais abruptas de poder. A presença dos EUA no mundo sofre agora a forte competição de rivais em rota de ascensão de poder, em particular a China, que tem a vantagem de não ter a sobrecarga da rede de alianças militares. Ao mesmo tempo, é internamente (res)sentida por um crescente número de americanos como um fardo (demasiado) pesado para uma contínua prosperidade das suas vidas. É uma tensão política que vai perdurar, ou até aumentar se, nos próximos anos, surgirem conjugações negativas de circunstâncias, internas e internacionais. Por outras palavras, o governo de Joe Biden irá enfrentar o dilema de manter uma presença global e de fornecer bens colectivos de segurança para os aliados (na NATO e noutras alianças, agora em particular na Ásia-Pacífico), sem continuar a deteriorar o bem-estar material de muitos americanos, especialmente os que se sentem perdedores da actual globalização. A sombra da China — e dos inúmeros problemas internacionais, alguns previsíveis como o nuclear do Irão e da Coreia do Norte, outros imprevisíveis —, vai pairar sobre o futuro governo de Joe Biden. A América vai finalmente virar a página política, mas os seus problemas mais profundos não se irão dissipar apenas por ter mudado de presidente.

(*) Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa / especialista em geopolítica

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