24 jan, 2025
Semana melancólica a que hoje termina. Como os mais chuvosos versos de Manuel de Freitas. A ponto de o comércio de escala capitalizar o abatimento dos corpos com uma Segunda-feira de super descontos: “Blue Monday”, diz-se; exactamente como o título da canção dos New Order. Diligente e cabisbaixo, segue curso o mais irrepreensível impulso gastador.
Pôs-se um mau tempo de Manuel de Freitas. O Benfica foi Aquiles em sua própria casa, tangido de morte por um tal Raphinha, patife de pés-de-prata e pê agá em vez de éfe. O Presidente Trump tomou posse, e lá tivemos nós de suportar a canga do ruído do mundo e seus pontos de exclamação. Repararam em Obama? Jingando ao som de Lou Reed, sempre na sua, sempre etc. e tal, os salões eram dele. Tivesse Trump um milímetro daquela manigância, o braço teso e descoordenado de Elon Musk, seria apenas e só o braço teso e descoordenado de Elon Musk.
Mas, nesta pluviosa e melancólica semana de Manuel de Freitas, descobri que a Vila Stº António foi posta à venda. E isso sim feriu a minha alma. Podem berrar que vem aí a tirania, ou que esta chuva, afinal, não é do poema ou da estação, mas uma alteração. Que merecemos para aprendermos a lição. Podem o fim-do-mundo, o diabo-a-sete ou outra justa-justaposição. Nada me desarranja mais as entranhas do que virem mexer nas estantes onde arrumo as coisas da memória.
A Vila Stº António é uma daquelas casas vivazes e ondulantes, de cores impossíveis, insuportavelmente camiliana. Das que os endinheirados que, no virar do século, regressavam do Brasil, mandaram erguer um pouco por todo o Minho. Tributos à aventura. À bazófia e ao ressentimento. Chamam-lhes Casa de Brasileiro. Porém, à Vila Stº António, em Santo Tirso, naquela economia sem pudor de que só o nortenho é fluente, sempre se chamou Casa do Bruxo. Assim, simples.
Lembro-me de ser pequeno e sentir pelo edifício um misto de encantamento e terror. Evitava com zelo esse lado da rua. Quando somos pequenos estamos mais despertos para os mistérios que habitam o interior das paredes. Para o que nos observa. Era então azul-escura e de morador incógnito. Nunca ninguém lhe viu um vulto. Um automóvel parado diante do portão. Um cão. Uma mangueira ligada que fosse. As persianas sempre caídas, como se padecesse de um sono antigo. Observando. Certo dia passou a ser branca. Assim, sem mais nem menos. Nem andaime, nem pincel. Somente o jardim, sempre cuidado.
Ficava situada na Carneiro Pacheco, uma rua como já não há: no centro da vila (Santo Tirso tem alma de vila), quintas de um lado, moradias do outro, a paisagem folgada, a estrada em paralelo dividindo a calçada. Eis o que importa dizer: para o português contemporâneo a ideia de um espaço por ocupar é insuportável; todo o espaço é espaço disponível. Para alguma coisa; tudo tem de ter função. Uma rua assim, claro, não poderia sobreviver. Há aqui um desencontro vital. Espaço em branco é espaço de Deus. O vazio é onde Ele se encontra. É quem Ele é. E por isso, não mexer. Eis o que é necessário: placas com um “Não mexer” escrito a maiúsculas.
Sabemos o que aquele “jóia rara de Santo Tirso” no texto promocional da agência, aqueles sete mil quatrocentos e vinte metros quadrados, aqueles cinco milhões de euros, significam. Um empreendimento imobiliário. Um festim autárquico. Um Domínio dos Deuses. Uma existência encaixotada. Perpétua “Blue Monday” numa das mais singelas ruas, de entre as mais singelas ruas que há. O fim de qualquer coisa inteira, incorrupta, constante. Que espelhe o infinito. Precisamos do mistério da Casa do Bruxo, como precisámos dos filmes do David Lynch. Da possibilidade de um horror.
As casas são como pessoas. Têm nome, fome, uma história. Nós é que nos habituámos a viver em números, encaixotados e a prazo. De uma maneira que não é natural: uns por cima dos outros, em fragmentos de betão horizontais. Sabendo que é tudo uma questão de tempo. Hoje não há mais moradores, apenas inquilinos. Antes uma casa era o lugar de um nome, uma família, gerações partilhavam-na. Em simultâneo, inclusive: avós, pais, filhos e fantasmas vivendo debaixo do mesmo tecto, por detrás da mesma folha de rosto. Hoje, tal coisa acabou. E nós, desalojados de um vaso comum, sofremos por causa disso e não sabemos: eis a verdadeira crise da habitação.
Esse mundo telúrico, fantasmagórico, esconde-se, submerso. O que, à superfície ainda resta, é para ser exterminado por um outro que já se ergueu.Semana de um mau tempo de Manuel de Freitas, esta que termina assim. E não se preveem boas abertas.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome