10 jan, 2025
Entro eu na Tasca do João e sou logo interpelado por um dos comensais: “De gravata? Não sabia que era para vir de cerimónia.”. Como assim “de gravata”? Como assim “de cerimónia”? Escrevo estas retóricas sabendo perfeitamente a fonte da inquietação dos meus amigos perguntadores. Ei-la: neste mundo informal, a menos que sejamos bancários, tornou-se impossível colocar uma gravata sem levantar ondas. No mínimo um olhar desconfiado. No mínimo um “quem é que este pensa que é?”. Mas vejam a minha pertinácia: uso a sempre (na realidade nem sempre, mas para o efeito: sempre).
Há certas coisas que pela progressiva ubiquidade que vão adquirindo ao longo do tempo, desaparecem-nos da vista. Estão lá, mas é como se não estivessem. Como fumo num escritório dos anos 80. Surpreende-nos a raridade, as borboletas, por exemplo. Hoje são poucas. “Olha, uma borboleta!”, dirá um homem adulto, recuperando naquele instante a infância perdida. Por outro lado,é invisível o fumo dos turistas de Lisboa, o fumo dos pedintes de Bombaim, o fumo do sexo em todo o lado.
Estou certo que o leitor detectará no seu quotidiano pequenos fumos destes e chegará às suas próprias conclusões. Já reparou, por exemplo como os homens se vestem tão mal? Não tinha reparado ainda? Pois bem. A fumarada é tanta que não se vê um peixe. Ouviu-se até falar de certa circular que o Grémio Literário se viu forçado a enviar, recordando aos sócios o código de vestuário do clube. O Grémio, leitores. O digníssimo Grémio!
Não se trata apenas de um triunfo fortuito do mau gosto. Esse triunfo existe; e é dilacerante. Não só na maneira como as pessoas se vestem, como no urbanismo, no mobiliário, na decoração de interiores, na música popular, no mundo editorial. Mas, para todos os efeitos, há um “gosto” em “mau gosto”. Um critério; por pior que possa ser. É outra coisa mais espessa sobre a qual escrevo. Um mal-estar do espírito que se manifesta na rendição total ao jugo opressivo da informalidade. Isso, e a submissão à péssima ideia segundo a qual nos devemos vestir como nos apetecer. Uma liberalidade, em tempos, reservada apenas a artistas.
Os homens nunca se souberam vestir, verdade. Não é do seu carácter. É um daqueles dons divinos que os distinguem das mulheres. Os homens colocam roupa no corpo, acima de tudo, porque tem de ser. Se pudessem andariam nus. Sei que é inacreditável, mas há quem o faça, no negro coração da velha e suicida Europa, bem no centro da perversa cidade de Berlim.
Começou pelos políticos: os rebentos da nossa vanguarda, sentados do lado esquerdo do plenário em São Bento, camisas ostensivamente abertas até ao segundo botão e cara de enfado. Poderia dizer que foi um plano malvado para desengravatar o mundo. E com isso retirar a dignidade das nossas instituições e rituais; e com isso impor o primado da “sensibilidade de todos e cada um”. Gravata a gravata, até à Revolução final. Possivelmente teria alguma razão. E enquanto a dita não chega, igualiza-se e nivela-se por baixo, gritando com pompa: “as vossas instituições não merecem o nosso esforço.”. Diluindo e apagando o gesto, em tempos firme, da liturgia do quotidiano.
Já foram a algum enterro, nos dias de que correm? É miserável. Reduziram o luto, reduziram o preto, reduziram, reduziram. Até chegarmos ao ponto actual: ninguém sabe estar num funeral. É natural que a dificuldade perante o grande desconhecido nos coloque num labirinto. Daí o luto, daí o preto, daí o ritual. Precisamos disso e muito mais (muito mais). Como um cego do seu pastor alemão.
Recordo quando era miúdo. Ao fim do dia, os pais iam buscar os seus filhos. Fatos com pernas. Senhores com a gravitíssima sobriedade que precisamos num adulto. Que ocupavam um lugar na ordem das coisas (ordem, é aqui a palavra que interessa). Dizia eu que usar gravata se tornou numa citação do tempo em que se usavam gravatas. Ora, tal e qual: é este o tempo que falava. Experimente-se hoje ir a uma escola ao fim do dia. São barbas por fazer, sapatos de ténis berrantes, camisas abertas até ao segundo botão: hordas de perigosíssimos bárbaros informais invadem os pátios. Vieram do Norte, montados nos seus confortabilíssimos chinelos de meter o dedo, para destruir o Império. Excepto os bancários: como colunatas bizantinas, só eles ainda usam gravatas. Sozinhos sustentam o Império: salve bancários!
Uma pessoa tem de estar identificada. Sobretudo com o lugar que ocupa no mundo. E mostrá-lo sem rodeios. O mínimo que se pode pedir a alguém é: “Identifique-se.”. É o melhor para todos. Para a ordem das coisas. Uma questão básica de higiene e dignidade. Não só os que cumprem uma função que convém estar sinalizada, mas todos. Um enfermeiro tem de parecer enfermeiro, um Juiz tem de parecer Juiz, um banheiro, banheiro, um polícia, polícia. Mas também os padres, os religiosos e os artistas, por encargo permanente, nunca devem deixar de o sinalizar. Somos nós que perdemos: e se alguém precisa desesperadamente de absolvição ou de uma obra de arte? Como é? Se se confundem com a multidão, perde o leigo e o coleccionador uma óptima oportunidade de salvação. Não pode. Mas até o resto de nós que por cá andamos, precisa de enfrentar a vida debaixo do hábito que lhe compete.
Outro dia fui parar, quase por acaso, a um dos mais encantadores segredos deste nosso pequeno pedaço de terra. O Mosteiro de Pombeiro. Um lugar visitável, para lá das suas actuais funções paroquiais. O guardião do vetusto complexo Beneditino é, nos dias que correm, o Segurança Bruno. O hábito faz o monge e o blusão da Prosegur faz o Segurança. Mal sabíamos nós que por baixo do intimidante artigo de pronto-a-vestir estaria um historiador amador, um organista apaixonado.
Se todos nos arranjarmos segundo as nossas inclinações, não restará muito mais para descobrirmos uns nos outros para além de um par de calças esverdeadas ou uma camiseta espampanante com motivos florais. “Só me dou com artistas...”, pensar-se-á com desdém. Se, por outro lado, nos mantivermos fiéis ao nosso lugar no mundo, o hábito torna-se como papel de embrulho. Então poder-se-á dizer: “Olha, uma borboleta!”.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome