29 nov, 2024
Em certo episódio, num daqueles separadores de monólogo no clube de comédia, Jerry Seinfeld, diz qualquer coisa do tipo: “Ser crescido é poder comer um pacote de bolachas inteiro e não ter de prestar contas a ninguém. Podemos comer o que quisermos que não estragamos o apetite. Os crescidos encontram sempre novos apetites.” Tem graça.
É evidente que tem graça, que diabo! Seinfeld é a mesquinhez da vida como a mesquinhez da vida é. Tudo tem graça. Mas neste particular tem mais, por ser, como se diz, “mesmo verdade”. Explico: à conta dos meus raides nocturnos pela dispensa lá de casa, reconheço-me nas observações do formidável americano. E sei de muito boa gente, de gravidade cinquentenária, que todas as noites limpa pacotes de Chips Ahoy com zelo helvético. Não devo dizer nomes. Para efeitos de pose literária, fica só o meu: Manuel.
Vem isto a propósito do jejum.
Eis o que importa ser dito: o jejum é a maneira que nós, adultos, temos de ser senhores de nós próprios.
Quando somos pequenos, os pais tratam desse assunto. Conquanto sejam pais como deve ser. São quem vigia a nossa fome. Quem impede e dá de comer. Os xerifes do estômago que não permitem que estraguemos o apetite.
Esta descrição corresponde a um quadro que assentou na nossa imaginação, mas as coisas já não são exactamente assim. A realidade é outra: mulheres e homens feitos, a reboque da canalha. Fornecedores de bolachas, tempo em frente aos ecrãs, ou o que quer que o capricho dos pequenos cachalotes se lembre de inventar. Estão lá para garantir que os filhos não gemem. Ó se estão.
Imaginemos agora esta hipótese: certo dia, o paroquiano diligente comenta com o confessor a necessidade de maior domínio sobre as suas acções. Muito do que fazia, não era fruto da pura vontade (que é a vontade de Deus), mas um reflexo rastejante da sua natureza caída. “Um silício, sr. Padre, preciso de um silício! Onde posso eu arranjar um silício?”, “Hum... talvez não seja má ideia começar por fazer jejum.”, responde o Cura, com a sensatez e parcimónia que dão fama aos nossos melhores. Ora, certo da sua mediocridade e modesto que tenta ser, o paroquiano faz como aconselhado: uma Quaresma, fora da Quaresma. 40 dias de vigia. Os resultados são extraordinários. Emagrece e tudo. Parece um santo.
Nada como antigas receitas espirituais, para problemas de sempre: o leitor zanga-se com facilidade? Sobretudo no trânsito? Fechar a boca. Tem dificuldades em levantar-se quando toca o despertador? Fechar a boca. Deita-se mais tarde do que deveria? Fechar a boca. Passa horas a olhar para o telefone? Fechar a boca. Etc., etc., etc.? Fechar a boca. Fechar a boca. Fechar a boca.
Tudo começa e acaba na barriga. Literalmente. Saímos de um ventre, para depois nos vermos devolvidos às entranhas da terra. E, se acaso nos mandarem para um daqueles trágicos e lôbregos fornos, chamados crematórios, assados como cabritos seremos, então. Será por casualidade que a barriga fica logo a seguir ao coração?
Não é à toa que nestes dias terapêuticos e faladores, ouve-se por aí uma expressão que é, “comer sentimentos”. Apesar da proveniência questionável, e da formulação um tanto-quanto irritante, a doutrina não é estapafúrdia. A não ser quando precisamos (e não precisamos assim tanto), comemos tudo menos o que estamos a comer. Mesmo aqui, agora, neste comboio. Já me está a dar a larica. Mas o que quero mesmo, é comer o tempo que falta para a viagem acabar. (Fechar a boca).
Trinca-se, mastiga-se, engole-se o tédio e o cansaço, a ansiedade e o medo, a alegria de um triunfo. Tudo menos o que metemos à boca.
Repito: se queremos ter alguma espécie de domínio sobre a nossa perversa natureza, comecemos pelo estômago. Façamos jejum. Mas jejum a valer. Não essa versão pagã que os feiticeiros modernos, no altar-mor da vaidade, apregoam, chamada “Jejum intermitente”. Isso só serve para cavar outros buracos. Abismos espirituais. Tocas-de-coelho-de-Alice para o país dos ayahuaskas e da “saúde mental”.
A fome é tudo. Estamos sempre a um passo da selvajaria, dominados pelo vazio assassino do estômago. Se não nos quisermos transformar na própria vontade de comer, temos bem que tomar conta dela.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.