22 nov, 2024
Não é que a última crónica não defendesse uma tese, defendia. Hoje insistirei nisso. E chegarei ao âmago. Ei-la: nos nossos dias, os grandes entusiasmos religiosos são, acima de tudo, um fenómeno que se dá nos não-religiosos.
Chegado que estava à folha de rosto do Expresso, sou encandeado por um brilho trepidante. Claro e prateado, como luminescências num peixe: «“Segundas-feiras sem carne” no Parlamento?», eis a questão. O estorvo. O nó. Eis o pepino que aperta o coração piedoso de Inês de Sousa Real.
Ora, a questão não lhe aperta coisa nenhuma. Não é problema algum. Como tudo o que emana do PAN, trata-se de um enunciado espiritual. Catequese, na melhor das hipóteses. É de evangelização que falamos, quando falamos das suas propostas. A pergunta à qual responde que “Sim”, na rubrica “Duelo”, é puro exercício retórico: para Inês de Sousa Real e o seu grupo de fiéis, a proposição sinaliza-se com um definitivo e contundente ponto-de-exclamação. Mais nada. Menos que isso é heresia. Repito: as grandes investidas espirituais são, hoje, uma faculdade exclusiva dos que não querem saber de Deus para nada. Insistirei as vezes que forem necessárias.
Francamente, não sei como classificar a proposta. Uma atitude despudorada? Falta de noção? Entusiasmo religioso, certamente. A congregação dos amigos dos animais, concebe de tal modo a culpa dos nossos pecados contra o planeta, que decalca dos melhores.
Para quem já não se lembra, a abstinência de carne é uma vetusta práctica espiritual católica. A Igreja determina que seja guardada, durante as Sextas-feiras da Quaresma. Antigamente, isto é, antes do Concílio Vaticano II, era um preceito observado em todas. Foi por causa disso que o McDonalds criou o Fillet-o-fish, sabiam? Pois. Em Cincinatti, boa cidade americana de maioria católica, o franchise local não facturava nada de jeito às Sextas. Adaptou-se. O Café de São Bento que se ponha fino, e comece já a planear alternativas para o cardápio das Segundas.
Repito: das encrencas civilizacionais que a Revolução Francesa deu ao mundo, a mais prodigiosa foi este entendimento religioso da política. Não é que, ao inventar a esquerda, tenha aberto as portas para a política se encharcar em religião. Antes, uma vez inventada, a esquerda viu-se obrigada a transferir o sentimento religioso para o pensamento político. E ao fugir das atrapalhações de Deus, passou a atrapalhar o mundo. É o que eles gostam. Neste filme, o pessoal dos animais dá tudo. Como criaturas dos quadros de Francis Bacon.
Toda a gente tem livre-trânsito para as mais extravagantes manifestações de zelo devocional. Os grupos mais extraordinários. E são admirados por isso: ensopar arte com tinta, acorrentarem-se a aeronaves, apelar à morte do inimigo em passeatas cada vez mais parecidas com procissões e, claro, os proverbiais regimes alimentares. Grosso modo, importa tornar a vida do cidadão um pouco mais caótica. Todos? Não. Uma pequena aldeia resiste. Com efeito, da hierarquia da Igreja só se ouvem pedidos de desculpa. E não é a Deus que os pede.
Nem sempre foi assim. Melhores tempos houve, em que tinha coisas desagradáveis para dizer. E era ouvida. Lembram-se, nos idos de 1998, da rábula da Última Ceia, no Herman Zap? Parece que foi ontem. Que espectáculo. Para quem estava lá, os anos 90 pareciam ser a última Coca-cola do deserto. Não eram. Mas um outro mundo ainda crepitava. O passado é sempre um outro mundo a crepitar. Melhor que este, afiança-nos a memória. Existia ainda uma centelha de desejo de moralidade cristã. Ténue, mas viva. Agora seria impossível. Não a rábula, claro está. Hoje, teria o apelo disruptivo de um pão com manteiga. Mas aquelas reacções maravilhosas dos Bispos, da Rádio Renascença, de Marcelo Rebelo de Sousa.
Quando penso num Portugal assim, passa-me pela cabeça a Lisboa na qual se destapava a cabeça para cumprimentar as senhoras. Ainda que nos anos 90, o uso de chapéu estivesse, há 50 anos, extinto.
Neste Portugal de 2024, os interditos são quais? Hipótese: elaborar uma tese pouco simpática sobre os amigos dos animais. Logo no primeiro texto que escrevi aqui para a Renascença, no qual mencionei os autocolantes do I.R.A., as reacções foram abrasivas. Precisamos de católicos destes. Malucos. Que se comportem com a intensidade de quem sabe que os tempos estão a chegar ao fim. Sonho eu uma Igreja de malucos? Em parte.
Num mundo que substitui Deus e a Igreja por outras coisas, o PAN é o equivalente a um daqueles cultos milenaristas, sobre os quais se leem os mais estupendos relatos. Se fosse há 800 anos, seriam Cátaros. A diferença está na personalidade jurídica. De ambos os altares, emana um fastio ao homem.
Se para nada mais for, o PAN serve para ilustrar o seguinte: tanto quanto a fome é do esfomeado, é das profundezas do homem a predisposição religiosa. E para isso Deus não é necessário. Pelo contrário, só atrapalha. Quando, felizes e contentes, os israelitas transpiravam em redor do seu bezerro, o que fez Moisés? Estragou tudo. Se os nossos planos forem por água abaixo, confiemos. É, seguramente, intervenção divina.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.