Siga-nos no Whatsapp
Manuel Fúria
Opinião de Manuel Fúria
A+ / A-

Entusiasmos religiosos (I)

15 nov, 2024 • Opinião de Manuel Fúria


Nada me impacienta com maior desvelo que o Grupo Impresa. "É ferida que dói e não se sente."

Folheava o Expresso este fim-de-semana. Foi um regresso, depois que, a propósito do caso “Identidade e Família”, interrompi a aquisição habitual do semanário. Lembram-se? Que pagode! Os zelotas acorreram aflitos a todas as janelas disponíveis, neste mundo que não sabe estar calado. Nenhuma estava trancada. O comentariato furiava doido, e essa loucura era feliz. Agora sim, directamente dos anos anos 30, a bordo de um Delorean, emergiam, prontos, os camisas azuis, ou castanhas, ou negras. Cerrar-se-ia, de uma vez por todas, em Portugal, o grande véu da noite autoritária. Para todos os efeitos, as únicas cores que se viram naquele fim-de-tarde na Bucholz, eram as que compunham o grafismo singelo das bandeirinhas da moda. Nas mãos de meia dezena de soldadinhos sarapintados.

Dizia então que folheava o Expresso. De trás para a frente, como me habituei. Disse que a culpa foi do David Diniz? Pronto. Pascal escreveu: “Devemos ter piedade de uns e de outros, mas devemos ter por uns uma piedade que nasce da ternura, e pelos outros uma piedade que nasce de desprezo.” Como omitir o mandante? Teria deixado de comprar todos os jornais: apesar da unanimidade, houve algumas excepções que tentaram relatar os incidentes com rigor e isenção (estou a adorar escrever “rigor e insenção”). É do sicofanta o compêndio de mentiras e meias-verdades de laboratório, atiradas com “rigor e insenção”, que lançou a gasolina. O tartufo que um dia saiu do Observador, pegou fogo à praça.

Mas não vale a pena carregar mais. Se não fosse o David Diniz, seria outro qualquer. O entusiasmo religioso em redor era o que bem se conhece. Certamente mais fervura que a aplicada, em defesa própria, pelos cristãos fanáticos que ousaram colaborar na colectânea. Chalupas foi como os baptizaram. Que espectáculo.

Folheava então o Expresso. Voltei a comprá-lo. Prometi a mim mesmo que nunca mais. Sabemos como correm os compromissos aos quais nos atribuímos credores absolutos: mal. Não é que não sejamos capazes. Mas também. Prestar contas a outros: eis a disciplina fundamental. Exercício espiritual do mais salubre que pode haver. Para os esclarecidos o que não falta são Forças Superiores. Pode ser uma realidade física, como o comité (detesto esta palavra) do partido, ou então metafísica, como a paz no mundo, ou ainda, e sobretudo, uma causa do tipo distante, como a Palestina ou o ódio aos Estados Unidos (agora é fácil, fácil). Para os chalupas há o confessor, os nossos pais, um oficial de patente mais alta, Deus Nosso Senhor, um chefe que seja.

É sabido: de contrário estamos a enganar-nos. Eu sabia, claro. A minha pirraça contra o Expresso não passava de um estabanado despautério. Fui temerário. Mais cedo ou mais tarde acabaria por reincidir. Ainda tentei monitores. O meu pai, generoso como é, envia todas as semanas, para os filhos e alguns amigos, aqueles pacotes de imprensa por atacado, em pdf, com todas as publicações. Para ler no telefone, ou no iPad, ou noutra maquineta qualquer. Um descomedimento noticioso que não consigo acompanhar. Também o que se poderia esperar deste triste espírito que só se compraz no que pode agarrar? Preciso dos jornais, dos dvdês, preciso dos discos, preciso de fumar. Cândidos costumes que fazem de mim um perigoso marginal.

Adiante com o Expresso. Folheava, dizia. De trás para a frente, como calhou saber fazer. Entretinha-me a ficar irritado. Nada me impacienta com maior desvelo que o Grupo Impresa. É ferida que dói e não se sente. Respeito esse talento. Sem ironia. Neste tempo de filtros cor-de-rosa, esqueceu-se a capacidade que o homem tem de ser estimulado pela negativa. Quem diz o homem, diz a subespécie portuguesa. É tudo ursinhos e unicórnios. Boa saúde mental e auto-comprazimento. Sabemos, porém, que não é assim.

O grande entusiasmo religioso, diria mais: a verdadeira fervura imarcescível, nasce da noção aguda que alguma coisa se perdeu ou pode vir a perder. É uma força poderosíssima. Das mais eficazes. Maior só mesmo a graça. E apenas por ser inconcebível. Repito: só somos verdadeiramente impulsionados a fazer alguma coisa que se veja, quando a vaga inexorável de um sentimento negativo nos força a isso. Neste particular, o Grupo Impresa é barra. Tiro-e-queda: adiro logo. É querer estar preso por vontade.

O Apocalipse, por exemplo. Um tema assíduo. Todas as semanas há notícias sobre o fim deste planeta. Tem sido assim; e, por enquanto, ainda por cá se vai ao monte. Não por muito mais, garantem. Enquanto ainda há tempo, vai havendo Expresso, Sic Notícias, Blitz, etc. etc. Até quando? Tem-se lido por aí que está com dificuldades. À beira da falência. Talvez sejam por isso as alterações que notei no caderno principal, como a inclusão de mais um suplemento. Desta vez chamado “Ideias”. Quais? As do costume. Entusiasmos religiosos. E para a semana, se Deus quiser, contem comigo para falar neles. Se até lá chegar o fim dos tempos, cá estaremos para o Juízo Final; agora a flor da minha irritação, essa, espero que se mantenha viçosa.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.