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Manuel Fúria
Opinião de Manuel Fúria
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Repetidores obtusos

08 nov, 2024 • Opinião de Manuel Fúria


Este comportamento atinge pura alucinação, quando o tema é Trump. Quando calha pronunciar o monossílabo. Se o fizermos, em termos não menos que apocalípticos, é o baque total. O Deus-nos-acuda.

Encontrei-me para almoçar, com um amigo, na Tasca do João. A vetusta sala minhota que, há anos, faz do meu exílio lisboeta uma razoável provação. Este é um amigo mais próximo de uma sensibilidade de esquerda. Como quase todos os meus amigos (bem, não posso afiançar que seja exactamente assim, mas funciona melhor para efeitos literários); como quase toda a gente.

Disse que aguardava? Aguardava. O meu amigo chega, enche o peito de ar e uiva, sorridente: “Eh lá, só homens, nem uma mulher!” Fascina-me a capacidade que a esquerda tem de, através de uma oração elementar, sentenciar imediata e sumariamente os demais, ao opróbrio civilizacional. De desonrar qualquer candura corriqueira com o seu laivo ideológico. Com um franco e gracioso biqueiro, enxotar-nos para os arrabaldes da cidade. Tudo é classe. Tudo é sexo. Irra, que tudo é luta! Sempre à cata de opressão. Uma fada-madrinha ao contrário: de repente aquele lugar, não era já venerável, mas obsoleto. E eu, adormecido que estava para a igualdade de género da clientela, nem Tomás de Alencar, nem nada: deplorável, só.

Que pensaria Mário Soares? O homem que construiu o país enquanto almoçava? O comensal do Campo Grande teria certamente inúmeros defeitos, mas sabia tratar uma pessoa como um indivíduo e não como membro de classe. Era assim que se fazia. Apesar de tudo, no seu tempo, a esquerda dele (que é, no essencial, a do meu amigo) tinha outra gravidade. Circunspecta, não. Austera, tampouco. Mas elegante o suficiente para um grau zero de compostura. Hoje, esse mínimo olímpico, sumiu do horizonte. Abandonou a sala. Uma sarandalha obtusa colonizou o espaço disponível. Depois de Segunda-feira, até aqueles 20m2 da Rua do Lumiar.

Quando digo obtuso, entendam-me: obtuso, de não saber. Não ouvir. Só repetir. Propagar. Como aquelas geringonças que espalham rede pela casa. De quem não cultiva um milímetro de isolamento. Reverbera ideias, acenos e comoções que viu, sabe-se lá onde. Bem, não se sabe, adivinha-se. Viu no Twitter, leu no Expresso, ouviu no Lux, no grupo do Facebook sei lá do quê. Qualquer coisa com a chancela do Guardian ou da Atlantic. Na Tasca do João? Em todo o lado.

Este comportamento atinge pura alucinação, quando o tema é Trump. Quando calha pronunciar o monossílabo. Se o fizermos, em termos não menos que apocalípticos, é o baque total. O Deus-nos-acuda. Uma ebulição pânica. As pessoas mal se aguentam. Como um Holden Caulfield em colapso. A cara ferve. A boca espuma. Basta tropeçar num texto com o nome inscrito. Como este. É sabido: as capacidades cognitivas ficam tolhidas. Incapazes do mais elementar discernimento. Gente bondosa, inteligente, razoável; consultores e engenheiros, músicos e pintores, arquitectos (sobretudo arquitectos). Eis o que está em causa: quando tropeçarem no primeiro “Trump”, não lhes vai ocorrer que este texto não é sobre ele, mas sobre eles.

Por exemplo: numa festa, num belo apartamento das Avenidas Novas, surge o tema. Formulo uma frase. Com a maior desafectação e pudor que sou capaz. Zero alarde: “Há uma diferença entre Trump e o seu programa político”. Um amigo, artista plástico, um dos melhores, mais gentis e razoáveis espíritos de toda esta Lisboa, fica possuído por um fantasma canídeo; assomado por um surto de raiva. Num mundo de obtusos, quem não é, tem de pelo menos fingir. Bater com a cabeça na parede com convicção, comer a sopa com o garfo, se necessário for. Este meu amigo era a voz da unanimidade: “Trump?! És doido! Um fascista, um ordinário, um mentiroso!”.

Recolho à base, sem conseguir dizer: talvez haja uma chance do empresário americano ter algum mérito. Nalguma coisa. Talvez possa existir gente decente fora de Nova Iorque e da Califórnia. Pessoas que apenas queiram tomar conta da família, gerar riqueza, ir à Igreja ao Domingo, dar-se bem com os vizinhos, organizar churrascos, sonhar em grande. Que prezem coisas como desporto, carros grandes, o casamento, crianças, foguetões. Que apreciem a normalidade, assim mesmo como ela sempre foi. Sem adjectivos. Normal.

Voltemos ao início. Segunda-feira na Tasca do João: Trump ainda não tinha ganho. Entretanto, Quarta chegou e já se sabe. Claro que Trump foi tema. Como não? É sempre. Mas talvez seja atrevido chamar “conversas” às trocas de palavras que pegam fogo, quando se fala nele. É impraticável qualquer coisa com princípio, meio e fim. Ficamos confinados às ressonâncias do roteiro obtuso despejado pelos meios de comunicação tradicional. Permanentemente. Segundo o Público de ontem? É uma questão de sobrevivência mundial. Trevas. O final dos tempos? Céus!

O homem, é ele próprio obtuso, está bem. Uma figura de desenho animado. Facto. Diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça. É possível. Essa coisa é por vezes disparatada. Pronto. Obtuso que possa ser, é quem chama para si os anseios de normalidade. Já viram? Foi nisso que ganhou.

Poderia ainda dizer para deixarmos de nos preocupar com problemas estrangeiros e ocuparmo-nos com coisas portuguesas. Mas páro. Enquanto abandono a liça de fininho: não contem comigo para as Guerras Culturais - o desatino ocidental, que como as bruxas, há quem não acredite. Esse litígio em relação ao qual sei onde é para estar. Repito: não se trata de Trump, mas de normalidade.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

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