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Manuel Fúria
Opinião de Manuel Fúria
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Todos os Santos Sem Cabeça

01 nov, 2024 • Manuel Fúria • Opinião de Manuel Fúria


Fico dividido. Afinal o Dia das Bruxas é cristão até ao tutano. É certo que se corrompeu. É certo que celebra um panteão de equívocos consagrados nestes tempos: a atracção pelo grotesco e o infernal, o aplainamento de especificidades locais como o Pão-por-Deus. Sempre foi agradável detestar isto.

Ora, estava eu preparadíssimo para o meu momento anual de desqualificação do Halloween, quando, de súbito, sou forçado a pôr o pé no travão. Seria enfático, proclamatório. Um contundente Basílio, um zeloso Acácio. Citaria Scruton, dizendo coisas como: “declínio do gosto”, “cultura herdada”, “atrofio dos nossos horizontes emocionais”. Seria provavelmente aborrecido.

Nunca falho em maldizer o Dia das Bruxas. Pendular como um cameo de Hitchcock. É um exercício anual que pratico com pontualidade e diligência: o neo-paganismo; a degenerescência dionisíaca; “sociedade pós-cristã, esta”; “uma festa satânica”; expediente comercial; importação contrafeita de costumes norte-americanos; afrontamento ao Pão-por-Deus; “antigamente é que era”; coisa saloia, terrível, abjecta; etcétera, etcétera, etcétera. Não é que não continue a achar estas coisas todas. Passei foi a achar outras.

Percorria eu velhos artigos da First Things, dei com um texto de David Wayne, um Pastor protestante que se interessou pelo assunto. Nele, apresenta a seguinte tese: O Hallowe’en (assim mesmo, com apóstrofe), não é uma festa pagã, tampouco existirá uma cristianização à volta de uma celebração de natureza anterior. É antes uma solenidade cristã corrompida. Mais. A associação automática que o cristão, como eu, estabelece a eventuais origens pagãs ou cultos satânicos, é uma simplificação preconceituosa. Está bem. Aceito. Mas entre cristão preconceituoso e pagão tolerante, sabemos quem escolherei. Está mais defendido epistemologicamente que o segundo e, nos dias que correm, é certamente mais entusiasmante e imprevisível. Adiante. Aceito porque, para além do texto estar publicado na First Things (tendo a confiar nos artigos da First Things, só por saírem na First Things), Wayne apoia-se em “Halowe’en – Tradition Worth of Defense”, uma aturada investigação sobre o tema, da autoria de Steve Carl.

E o que nos diz então o segundo autor? Não vos maço com detalhes. Tento resumir: O “Dia de Todos os Mártires” começou a ser celebrado no século IV. Foi criado como memorial das vítimas do Grande Holocausto Cristão. Roma perseguiu e matou 7 milhões (!) de pessoas, por se recusarem a apostatar. Entre elas encontra-se, por exemplo, Santa Blandina de Lyon, para a qual escrevi uma música que aparece no meu último disco. Nos dias 13 e 14 de Maio havia procissões. A pessoas vestiam-se do Santo Mártir da sua predilecção. Quem ia de São Paulo, ia sem cabeça. De São Sebastião, 3 ou 4 lanças trespassadas. E assim por diante. Havia também os que se disfarçavam dos antagonistas: as feras do Coliseu, os soldados romanos, Satanás. A caterva de monstrengos e Santos decepados ia depois pelas ruas, pedindo comida para os pobres. Fantástico.

Tem graça que na Missa de Domingo passado, na Estrela, em digressão final sobre o tema, o Padre Duarte da Cunha sugeriu que a miudagem se disfarçasse do Santo da sua preferência. Não parecia saber do pedigree da data. Mais que uma bem-intencionada intuição pastoral, era afinal um tiro no alvo da ordem cristã das coisas. Mas regressemos a Roma.

Trezentos anos depois, um antigo edifício usado para torturar e executar cristãos, foi convertido em Igreja memorial de todos os mártires da Grande Perseguição do Imperador Diocleciano. Vai daí, alterou-se a data da solenidade para o dia em que o edifício passou a Igreja. 1 de Novembro. Com o tempo, muitos começaram a chamar ao dia, o de “Todos os Santos”.

Na Inglaterra da Idade Média, era popularmente conhecido como Hallowed Day. A evening do dia, correspondia à noite do dia anterior. Afinal, vivia-se um tempo em que se acordava de madrugada. Os dias começavam no escuro. Como a Noite de Natal, ou Fim de Ano, assim também: a Noite de Todos os Santos. A Hallowed Even contraiu para Hallowe’en. Estas coisas acontecem mesmo. Como “bicho no corpo inteiro”, passou a “bicho carpinteiro”, esse distinto gambozino do nosso léxico popular.

Para quem dá importância a genealogias, certificados de origem e demais barómetros de pureza, isto é uma trabuzana. Para quem não dá, também. Não interessa se se gosta mais ou menos. São factos, Manuel: e como não se cansa de repetir essa máquina de disparar palavras chamada Ben Shapiro, os factos estão-se nas tintas para os teus sentimentos.

Fico dividido. Afinal o Dia das Bruxas é cristão até ao tutano. É certo que se corrompeu. É certo que celebra um panteão de equívocos consagrados nestes tempos: a atracção pelo grotesco e o infernal, o aplainamento de especificidades locais como o Pão-por-Deus. Sempre foi agradável detestar isto.

Poucas coisas confortam quanto os nossos ódios de estimação. São lugares aos quais voltamos como quem regressa a uma casa de família. Sem complicações, com o à-vontade de um miúdo mal-educado. Mas agora já não consigo.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

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  • Conceição Lima
    01 nov, 2024 Moteira de Conegos 19:00
    Parabéns pelo texto: reflecte, deambulando pelas tradições e pela introdução/ invasão de novos habitos...Gostei dessa ironia fina que obriga a sorrir e a pensar...Beijo, Manel!