27 nov, 2024
É uma pena que as datas da revolução portuguesa tenham deixado de ser ocasiões de estudo e reflexão para se tornarem símbolos políticos fraturantes e cativos de agendas partidárias presentistas. Eis o fado da história de Portugal: canibalizam-se-lhe bocados para pôr na lapela e tentar manchar lapelas alheias: e assim, num sistema mediático português perigosamente inclinado para a esquerda, o 25 de abril é bom, e é todo da esquerda, e o 25 de novembro é mau, porque os “fascistas” tomaram conta dele, com o suposto intuito sinistro de ofuscar o “dia inicial, inteiro e limpo”.
Como eu era criança quando o “popó” do PREC, que andara derrapado na berma da estrada desde março de 1975, guinou de volta para o alcatrão em novembro, não tenho memória viva disso. E não sendo político e sectário (hoje é quase sinónimo!), só posso escrever sobre a data com o conhecimento (possível) que me vem do meu ofício de historiador. E digo “possível” porque, do muito que já li e leio, continuo a achar que o 25 de novembro é um dos episódios mais obscuramente interessantes da nossa história contemporânea. Na saudosa revista «Indy», Melo Antunes escreveu (em 1998), “ao fim ao cabo, o que se passou no 25 de novembro foram várias coisas”. Por isso mesmo, faria bem à cultura cívica do país estudar a data, não para a diabolizar ou comemorar, mas para conhecer - para compreender, no fundo, o acerto da conclusão tirada logo no final desse ano de 1975 por Eduardo Lourenço: “Não sei quem ganhou, embora creia que tenha sido a revolução possível e lúcida; mas sei quem perdeu - o verbalismo ultrarrevolucionário e a sua miragem frenética de sovietizar o país”.
O melhor que se faria à memória do PREC era tratá-la como François Furet tratou a Revolução Francesa - como um processo, mais ou menos longo, de causalidade, concatenação, sequência e alguns acidentes, de cuja leitura nenhuma peça pode ser subtraída sem empobrecer e falsear o retrato de conjunto. Assim, o que é preciso recordar, aprofundando, e ensinar aos vindouros é que o 25 de abril libertou Portugal do Estado Novo e o 28 de setembro selou o curso da descolonização, em 1974, o 11 de março insuflou o comunismo, o 25 de abril separou duas legitimidades (eleitoral e ‘de facto’) e o 25 de novembro salvou a promessa democrática, em 1975, e que o 2 e 25 de abril, o 27 de junho e o 12 de dezembro, em 1976, estruturaram a nova casa política portuguesa, com Soares em São Bento, Eanes em Belém, as autonomias arquipelágicas e o poder autárquico. Quem não anda nisto para usar a História como lama na ventoinha, é isto que tem de recordar e de matutar.
Por razões que são da luta política pós-geringonça, o 25 de novembro ganhou uma temperatura que não devia ter. No fundo, a não ser a esquerda militar mais folclórica, os que perderam não perderam por muito, e os que ganharam não ganharam por muito: o PCP continuou legal e no governo, e o centro e direita, moderando a vertigem revolucionária, tiveram de aceitar uma democracia tutelada pelo Conselho da Revolução até 1982 e uma Constituição em muito (na economia e na sociedade) ditada pelo MFA até 1989. Novembro salvou abril? Certo. Mas para o cumprir a sério, ainda faltava um bocado. E no meio disto tudo, abundam oportunistas, ressabiados e amnésicos. O Chega quer a data para si, porque nada quererá de abril; o BE e o Livre não querem que a data seja da AD ou da IL para que estas não flirtem assim com a “extrema-direita”; e o PCP e o PS fazem por se esquecer de novembro, os comunistas porque sabem bem onde estiveram até uma certa hora do 25 de novembro, e os socialistas porque parecem querer esquecer - pobre Mário Soares! - onde estiveram (e que causa então defendiam) em todas as horas do 25 de novembro.