16 out, 2024
Em setembro de 2014, na evocação do centenário do início da I Guerra Mundial, o Papa Francisco classificou todo o ato bélico como uma “loucura” que estipula “a destruição como plano de desenvolvimento”, no fundo provinda de uma atitude de “dessolidarização” com o outro, como na ação egoísta de Caim (“A mim, que me importa o meu irmão?”). A sombra de Caim estendia-se, assim, “sobre nós”; ela via-se “na história que vem desde 1914 até aos nossos dias”; e via-se – vê-se – “também nos nossos dias”. Por isso, e para Francisco, talvez se pudesse falar “de uma terceira guerra mundial combatida por pedaços, com crimes, massacres, destruições”. De 2014 até hoje, uma década volvida, os “pedaços” dessa terceira guerra mundial não cessaram, infelizmente, de se multiplicar.
Os dados do mais recente «Global Peace Index» mostram o recuo. As pré-condições potencialmente geradoras de conflitos são agora as mais elevadas desde o final da II Guerra Mundial, não só pelo aumento da competição geopolítica internacional ou pela sofisticação e dispersão da tecnologia bélica, mas por desequilíbrios económicos, tensões sociais, radicalismos políticos e escassez de recursos naturais. Há hoje por todo o mundo – sobretudo no Médio Oriente, no norte de África ou no Leste da Europa – 56 conflitos ativos, o maior número desde 1945, e mais internacionalizados, envolvendo 92 países. O número de mortos em guerras subiu 475% nos últimos 18 anos e atingiu, em 2022, o valor mais elevado desde 1992, quando os Balcãs estavam a ferro e fogo. A guerra russo-ucraniana tem registado uma média mensal de cerca de 2.000 mortos; em Gaza, no espaço de um ano, morreram já cerca de 40.000 pessoas. Fugindo das guerras, da repressão política, das secas, das cheias ou da fome, o mundo contabiliza hoje 120 milhões de refugiados ou deslocados – e em 16 países, mais de 5% dos seus habitantes (sobre)vivem nessa duríssima condição. O impacto económico de todas as formas de violência ascende a astronómicos 19,1 triliões de dólares, cerca de 13,5% do PIB mundial, dos quais 8,4 triliões de dólares são gastos militares diretos. Por contraste com estes, o investimento global em construção e manutenção da paz não ultrapassa 49,6 biliões de dólares, ou seja, 0,6% do total de gastos militares.
O irenismo parece ser uma espécie ideológica em vias de extinção. Em entrevista recente, Viriato Soromenho Marques lembrou que “estamos a viver a fase mais delicada não apenas da história após 1945, mas de toda a história humana”, porque “nunca houve, no passado, um milésimo da capacidade letal” hoje acumulada nos arsenais bélicos ou no horizonte de uma guerra nuclear. E realçou como nos dois grandes cenários de conflito abertos - o Leste da Europa e o Médio Oriente - estão envolvidas cinco potências nucleares (Rússia, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Israel) e outras espreitam. Estas duas macro guerras, mais a outra meia centena que vai lavrando, potenciam a incerteza decisória de todos, bloqueiam as sociedades e têm um devastador impacto ambiental. É assim enorme - conclui ele - e não se vê como possa recuar, o risco de autodestruição da humanidade; e em muitos casos, o melhor a que se poderá ambicionar será o de uma trégua cansada, isto é, uma zona cinzenta de nem guerra, nem paz – uma paz podre e armada que nada augura de bom.
Neste cenário, todos os esforços políticos globais para desescalar os conflitos, seja das sociedades que os vivem e sofrem, seja de governantes moderados que os podem limitar, seja das organizações internacionais multilaterais, são indispensáveis. A arbitragem para a paz tem de ser a escolha racional dos seres humanos racionais. Para azar destes, contudo, o terrorismo ou o neoimperialismo movem-se na irracionalidade.