24 jul, 2024
A eleição presidencial norte-americana de novembro de 2024 poderá vir a tornar-se o mais surreal, embora o mais determinante, escrutínio dos próximos anos - pelo menos até 2027, quando haverá presidenciais em França.
O atentado contra Donald Trump foi um facto novo e diversamente interpretado. No “mainstream” anti-trumpista, tentou-se primeiro a negação (o candidato caíra no palco ou tinha havido tiros no comício…), e depois a responsabilização (Trump fora quase vítima do discurso de ódio que espalhara na América, sobretudo desde a autoria moral do ataque ao Capitólio em janeiro de 2021…). Só a custo se reconheceu o óbvio anormal da coisa. Há mais de quarenta anos que cenas destas não se viam na maior democracia do mundo, desde que, em 1981, um fanático de Jodie Foster a quis impressionar disparando sobre Ronald Reagan. Os EUA têm alguma tradição de atentados contra presidentes ou candidatos, bem-sucedidos (Lincoln, Garfield, McKinley, os dois Kennedy), ou falhados. Mas os tempos da guerra civil, do anarquismo, da tensão racial ou das grandes conspirações já lá vão. Ou se calhar não.
O trumpismo e o wokismo, versões norte-americanas do populismo identitário e das causas fraturantes da paisagem política europeia, têm trazido os EUA a ferro e fogo. E o que era só sentimental ou verbal é agora físico e descamba na violência armada. A América dividiu-se em duas tribos, e o beco-sem-saída é tanto maior quanto elas alimentam reciprocamente o entrincheiramento e queimam qualquer ponte de contacto para um chão comum. Trump não existiria sem as intransigências culturais, as militâncias ideológicas e os preconceitos snobes contra os “deplorables” que a esquerda americana incendiou; da mesma forma que o wokismo não existiria, como continua a existir, sem a criação dessa nova direita, que é uma revolução republicana, da América profunda, radicalizada pelo nativismo, pela agenda reindustrializadora e protecionista, pelo anti globalismo e antieuropeísmo, e por um vigoroso e moralizador cristianismo de combate. A grande novidade do nosso presente é que o que antes, em democracia, era diferença esgrimível, hoje é quase antagonismo bélico.
As consequências desta tribalização dicotómica estão à vista. Em pânico, os democratas conseguiram alijar Joe Biden, atirando (é o termo, porque não há tempo para outras escolhas) a candidatura democrata à Casa Branca para as mãos de Kamala Harris. A atual vice-presidente será uma adversária enérgica de Trump e a impunidade arrogante deste ficará mais exposta. Mas a nova candidata tem três meses para resolver o dilema: continuar o caminho menos radical do decaído Biden para uma acostagem ao centro, ou aparecer como o rosto das esquerdas numa plataforma de pura radicalização contra Trump? Já do lado oposto, e em crescendo, o trumpismo pode reingressar na Casa Branca mais determinado do que nunca em vingar 2020, com um Partido Republicano muito mais unido em torno do caudilho-quase-mártir, com uma máquina mais oleada e com um vice-presidente (James David Vance) com idade e determinação para fazer do trumpismo um projeto com futuro para lá de 2028.
Quando duas tribos políticas só se ouvem e glorificam a si mesmas, em fechamento autista, e se antagonizam uma à outra com a virulência a que assistimos, é o próprio mecanismo mental em que repousa a democracia que está em risco. Olhando a história recente, a América está em rampa deslizante. Achámos inaudito o braço de ferro das recontagens eleitorais de Bush/Gore em 2000; e edificante o clima que presidiu à disputa eleitoral regrada de Obama/McCain em 2008. Ora, o inaudito atingiu hoje outros patamares; e o edificante ameaça ter desaparecido das nossas vidas.