12 jul, 2023
A infausta morte do historiador José Mattoso privou do mundo dos vivos uma das maiores figuras da cultura portuguesa do século XX. Não foi, nem era, apenas um grande universitário e académico, mas também um grande pensador, um elegantíssimo cultor das letras e um verdadeiro “diretor espiritual” para os muitos que longe chegaram como seus discípulos.
Eu nunca me contei entre estes, pela simples razão de que não sou medievalista, mas contemporanista. Todavia, no 2.º ano da minha licenciatura, na Universidade Nova de Lisboa (dedicado ao estudo pluridisciplinar da Idade Média), José Mattoso deu à minha turma algumas aulas (o grosso já pertencia a um outro saudoso, Luís Krus, também já falecido). Ar tímido, pose discreta, cadência ritmada, era possível “vê-lo” pensar e procurar a fórmula exata de transmitir, com fidelidade e simplicidade, o passo profundo da História que nos queria contar. A jovens de 20 anos, parecia-nos um monge laico, quase uma figura medieval etérea, estranhamente transplantada para o bulício do auditório na Avenida de Berna. Narrava interpretando e emprestando um sentido quase cinematográfico ao imaginário do feudalismo de que nos estava a falar.
Não é certo, nele, se foi o ofício que o conduziu a Deus, ou se foi a vivência religiosa que o fez historiador. O seu pai, António Gonçalves Mattoso, foi o célebre autor dos compêndios de História Universal por que gerações de alunos do Estado Novo estudaram. O filho, nascido em Leiria em 1933, professou jovem na vida religiosa, e foi monge beneditino durante vinte anos, em Singeverga (Portugal) e em Lovaina. Regressado à vida laica, ingressou na universidade, onde se tornou o maior dos medievalistas portugueses, para além de diretor da Torre do Tombo. Especialista em história da espiritualidade, das ordens religiosas e da aristocracia portuguesas entre os séculos XI e XIV, deixou uma obra notabilíssima. O grande público talvez o conheça das estantes de casa como coordenador da inovadora «História de Portugal» (ed. Círculo de Leitores), publicada em oito volumes na década de 1990. Mas o grande público deveria agora talvez (re)descobrir, através de outros dos seus livros, o quanto José Mattoso, ao estudar as origens e a formação do reino de Portugal, nos legou uma das mais importantes reflexões sobre o país - o seu espaço, instituições, dinâmicas sociais e elementos estruturantes das mentalidades - ainda hoje disponíveis. Com a geografia de Orlando Ribeiro ou a psicanálise coletiva de Eduardo Lourenço, a historiografia de José Mattoso é registo incontornável na compreensão da(s) identidade(s) naciona(is). Por isso o país o galardoou com diversos e justos prémios.
O discreto “cavaleiro medieval” que ouvi em sala de aula surgia deslumbrante quando lido. Com Georges Duby e Jacques le Goff, Mattoso será sempre a minha grande referência para o pouco que sei sobre a Idade Média. Mas a sua obra transcende a especialidade e em muitos e muitos ensaios sobre a historiografia e o ofício do historiador podem todos (e os contemporanistas também) aprender muito. A História de José Mattoso não é crónica positivista, nem ativismo de causas: é narrativa cívica, porque edificante, servida de escrutínio sério, de imaginação interpretativa e de arte literária. Como um dia escreveu, “a ignorância ou o desprezo do passado exprimem um olhar curto, obtuso, grosseiro, sobre a vida”, porque a História, disciplina humanista de intensa referência cristã, podia definir-se como “uma fantástica sinfonia, feita da incomensurável mistura de elementos de toda a espécie, tão dispersos e contraditórios como a própria vida” – a dele, a de todos nós, em qualquer tempo e lugar.