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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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De volta à Ucrânia: os factos

28 jun, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


A “revolução laranja”, pró-europeísta, da Ucrânia, em 2004, foi o ponto de partida fraturante para a radicalização revisionista de Putin.

O desafio lançado pela presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, à deputada do PCP Paula Santos, na Assembleia da República – a saber, que os deputados comunistas tivessem a coragem de reproduzir o seu discurso “pacifista” sobre a guerra russo-ucraniana em Kiev – mereceu uma resposta agreste a posteriori. O PCP já revestiu o seu pró-putinismo com diferentes roupagens. No início, o silêncio perante a agressão à Ucrânia; depois, a fábula da “operação especial”; de seguida, com um enfadado António Filipe a declarar “pronto, se querem que eu use a palavra invasão, eu uso-a!”, lá se reconheceu a dita invasão, mas justificada pelo expansionismo agressivo da NATO, dos EUA e da Europa, e por a Ucrânia ser um antro de “nazismo”; finalmente, porque há invasão e guerra, chegaram os beatíficos apelos à “paz”, esquecendo que se a Ucrânia depuser as armas, desaparece, e que só quando a Rússia fizer o mesmo…é que acaba a guerra e poderá haver (alguma) paz.

Eis o dogma: o Ocidente é um lobo em pele de cordeiro, a Ucrânia é um terreno útil para uma guerra entre a NATO e Moscovo e Putin tem o direito de se defender! Ora, contra a desinformação e a propaganda, só os factos podem ser antídoto – ou seja, o que realmente aconteceu, independentemente das nossas vontades criativas. Socorro-me, para tal, do que lista Timothy Garton Ash no seu recente, e excelente, novo livro, já traduzido para português com o título «Pátrias. Uma História Pessoal da Europa».

Garton Ash conheceu Putin numa conferência em 1994, quando o então deputado municipal por São Petersburgo declarou que o colapso da URSS tinha deixado territórios russos, como a Crimeia, fora da Federação Russa, e que esta tinha o dever de cuidar deles! Nesse mesmo ano, contudo, os Acordos de Budapeste, assinados entre a Rússia e a Ucrânia, estabeleceram o reconhecimento da independência, soberania e fronteiras da segunda por parte da primeira. Em 1997, Rússia e NATO firmaram um acordo de entendimento sobre a expansão desta ao Leste europeu; no ano seguinte, a Rússia foi admitida no G8 e, chegado ao poder (substituindo Ieltsin), Vladimir Putin afirmou, em 2000, não ver a NATO como inimiga e poder equacionar até a possibilidade de a Rússia a ela se juntar, ou criar uma parceria estratégica, como se veio a efetivar com a fundação do Conselho NATO-Rússia, em 2002. E se o antigo Leste europeu e ou antigas repúblicas da URSS quiseram juntar-se à NATO, a partir de 1999 – e só a partir desta data, no contexto acima descrito – e à UE, no alargamento de 2004, fizeram-no no exercício autónomo e legítimo da sua vontade como Estados soberanos. Quanto a Vladimir Putin, nunca se perguntou por que razões o Ocidente e a aliança atlântica eram, e são, tão sedutores para os países pós-comunistas, porque essa é a pergunta a que nenhum comunista quer responder!

A “revolução laranja”, pró-europeísta, da Ucrânia, em 2004, foi o ponto de partida fraturante para a radicalização revisionista de Putin. Daí as invasões de parte da Geórgia, em 2008, da Crimeia, em 2014, e do Donbass, em 2022. Antes da ofensiva iniciada no ano passado, o conflito na Crimeia e no leste da Ucrânia já causara umas 14.000 vítimas. E a sangrenta campanha de 2022 estava na agenda de Moscovo há anos, como uma escalada inevitável, e procurada, de um confronto com o Ocidente que foi Putin quem quis abrir, e não os EUA, a Europa ou a NATO.

É tudo isto que o PCP omite – omitindo, assim, a premissa fundamental de que há uma decisiva diferença moral entre o uso da força para invadir e destruir e o uso da força para defender e libertar. Sabemos de que lado da barricada estão os órfãos da URSS.

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  • António Costa
    28 jun, 2023 Porto 11:44
    No cimo de tudo fica a questão, quem se importa com o seu próprio povo, quem dá importância aos dedos que têm os anéis, isso, entre os beligerantes é o que é deveras importante nos julgamentos morais que se impõem. Assim odeio um e apesar de discordar ( o confronto é inevitavel (?) Que seja no território do da ideia fixa) compreendo o outro. No meu fraco entendimento a Ucrânia nunca teve a soberania total (estaleiro naval e instalações militares) da Crimeia. Os defensores do direito internacional da "guerra santa" deveriam adotar os direitos (de todos) humanos, quem zela pelas suas gentes e quem se perde em megalomanias e juramentos de sangue (que no presente caso, sangue dos que prometeu proteger em troca da prosperidade e da segurança). Esse vosso heroi da guerra sacrifica o povo por um condado e ainda por cima tem uma mão cheia de nada para oferecer a quem lá vive. Neste ponto não existirá alterações, são factos, o final será dado por esta abordagem, compactuar com salvejarias por posse de condados, até quando consentem, os supostos sábios da europa, que crianças que bricam no seu quintal arrancando olhos aos seus adversários por posse de brinquedos o façam sem nada fazer. A europa promove a concordia e a liberdade, ambiciona a paz universal e o respeito integral da dignidade humana, é tolerante a todas as formas altruistas de pensar, assim a integração do povo russo e ucraniano no seu conjunto é uma prioridade, um objetivo. Sabedoria é acolher, cuidar, proteger, amar.