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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Um túnel sem luz ao fundo

31 mai, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


Perante o que se sabe que se passou ou se suspeita que possa ter acontecido, estará ainda vivo o constitucionalizado princípio do “regular funcionamento das instituições democráticas”? Começo a duvidar.

De escândalo em escândalo, revelação ou incidente até ao colapso total – esta parece ser a “linha do tempo” do governo de António Costa. De janeiro para cá, o executivo ameaça um “crash” político por causa da TAP, desde as audições à antiga CEO da companhia (entretanto saneada) à inacreditável noite dos tumultos no Ministério das Infraestruturas, que tem rendido folhetinescas sessões na respetiva CPI.

Perante o que se sabe que se passou ou se suspeita que possa ter acontecido, estará ainda vivo o constitucionalizado princípio do “regular funcionamento das instituições democráticas”? Começo a duvidar. Um governo que treinou com a CEO da TAP as respostas que ela depois deu na CPI significa um inadmissível desrespeito pelo parlamento e, portanto, uma interferência do executivo no legislativo, calcando a separação de poderes. Um ministro (aliás, uma sua chefe de gabinete) que mobiliza o SIS/SIRP para tratar do roubo de um computador (que afinal não era, mas que é talvez um furto) significa uma instrumentalização, se não mesmo um abuso de poder, pela qual se governamentalizam (e porquê?) as forças de segurança. Por fim, se o que se passou no Ministério das Infraestruturas não significa um irregular funcionamento das instituições, então talvez os constitucionalistas devam densificar os critérios máximos de bagunça pública além dos quais as ditas já não funcionam regularmente.

Antes das audições Pinheiro-Eugénia-Galamba, o presidente da República andou semanas em modo “segurem-me, senão eu dissolvo!”. Quis dissolver Galamba, mas António Costa teve um assomo de autoridade. Galamba ficou, embora mais do que remodelável assim que o PM vir nisso vantagem. Após a audição do ainda ministro, Marcelo prometeu que falava, não falou, mas depois veio falar…para dizer que permanece “atento”: “segurem-se, senão eu dissolvo-vos”.

E porque não dissolve o presidente? Porque parece estar a germinar doutrina constitucional nova: a governação pode ser uma lástima, mas sem alternativa credível é melhor que fique. Voltamos à requerida densificação: quão lastimoso pode ser um governo esboroado para que o PR decida usar a “bomba atómica”? Lastimosos pântanos do passado já parecem mais cristalinos do que o atual.

Sabe-se porque é que o presidente não dissolve, vontade não lhe faltando. As sondagens eleitorais dão empate técnico entre PSD e PS, qualquer um deles (sobretudo o PS, que perdeu 13% face às eleições de 2022) longe da maioria absoluta. Sem o Chega, o bloco da direita teria uns 37%; só com Ventura no barco alcançaria uns 48%, mais do que toda a esquerda coligada (PS, BE, CDU, PAN e Livre), embora a reedição da “geringonça” seja agora impensável. Resultado: baralhando e voltando a dar, via dissolução e eleições, Marcelo ficaria talvez com um PSD ou com um PS minoritários, que durariam até à primeira moção de censura, ou com o Chega a viabilizar (ou a chantagear) o PM Montenegro, do alto dos mais de 11% (uns eventuais 650.000 votos!), que mostram o preocupante crescimento do protesto antissistema.

Marcelo não quer ficar na história como o PR que abriu as portas do poder ao Chega. Mas se esse é o seu princípio, então António Costa poderá eternizar-se em São Bento, fazendo render a sua estafada chantagem com o papão do populismo, epíteto fácil cuja aplicação, aliás, tem vindo a generalizar a todos os “berradores” na televisão e a todos os opositores no parlamento, numa estratégia de trincheira em que a crítica é uma ofensa e o escrutínio democrático uma devassa. E assim, com um PR paralisado e um PM inimputável, a política portuguesa (sobre)vive num túnel sem luz ao fundo.

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