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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O monopólio de Abril

03 mai, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


A capacidade de o PCP reivindicar o monopólio de Abril foi-se e nesse auto presumido papel instalou-se o todo poderoso Partido Socialista.

A última quinzena foi fértil em sinais do que se pode designar como um afunilamento da memória e da História. Houve a comemoração do 50.º aniversário da fundação do Partido Socialista (em abril de 1973); e mais uma celebração do 25 de Abril (este merece maiúscula), naquela trágico-cómica sessão parlamentar (ou como diria Bordalo Pinheiro, “para lamentar”), com uma parte que não era “solene”, mas foi, com Lula da Silva como convidado de honra, a bancada do Chega como animadora de serviço e Augusto Santos Silva como o anfitrião moralista.

O afunilamento da memória nota-se na forma como, cada vez mais, o pessoal que forma o governo, o partido que ocupa o Estado e a comunicação social dominada por clientes dos dois primeiros veiculam a narrativa de que Abril (o de 1974) foi obra do PS e que o regime democrático, que já leva 49 anos, tem sido uma beatífica construção do PS, que de vez em quanto lá alterna com a malfadada direita. Durante anos, antes e depois de 1974, costumava ser o PCP a deter o quase monopólio da luta antifascista. E desse afunilamento se queixava o PS, porque Soares não era Cunhal e, contra o Estado Novo, a Resistência Republicano-Socialista, primeiro, e a Ação Socialista Portuguesa, depois, não se confundiam com os comunistas, como ficou patente nas eleições de 1969.

A capacidade de o PCP reivindicar o monopólio de Abril foi-se e nesse auto presumido papel instalou-se o todo poderoso Partido Socialista. Como o PS é de 1973 e o princípio da democratização é de 1974, as duas realidades - partido e regime - como que se confundem e, pior, muitos existem que as querem confundir, para uma versão da História segundo a qual a liberdade foi obra dos socialistas.

O registo do cinquentenário do Partido foi continuado, no dia 25 de abril, pela forma como o PS tomou conta da comemoração dentro do parlamento, numa festa com os seus convidados, onde destratou, quase como intrusos, os partidos da direita. O PSD bolinou na atitude para com Lula da Silva, a IL não compareceu e o Chega, numa arruaça que não quadra com a dignidade parlamentar, fez mais um favor a Augusto Santos Silva que, com a pose de mestre-escola DDT, se divertiu a comentar, com Marcelo e Costa, como se põem meninos da ordem, porque Abril é todo dele(s). O que se passou este ano repetir-se-á para o ano, com Lula da Silva ou sem ele. Afinal, o 50.º aniversário da revolução ocorrerá, provavelmente, com este PS abancado no poder; e, vejam lá a boa coincidência, no mesmo ano em que se celebrará o centenário do nascimento de Mário Soares (veremos que Soares será recordado…).

Este afunilamento da memória (só eles existem, só eles contam, só eles fizeram…) é uma grosseira simplificação histórica. E se a direita, em particular o PSD, quer cobrar voz como oposição credível (mais substancial que a IL, mais institucional que o Chega, mais operacional que o CDS), pode começar a fazê-lo por um combate pela História. O 25 de abril de 1974 teve autores (os militares), mas não tem donos. Foi um ponto de partida para um PREC e uma democratização onde o PS, o PSD e o CDS tiveram grande papel. Mas foi também um ponto de chegada de um processo evolutivo de uma década e meia (1958 em diante) de transformações socioeconómicas, de mutações culturais e mentais, de consciencialização cívica e política onde a direita democrática (ex. a ala liberal marcelista) deixou um contributo também relevante, hoje sectariamente esquecido pelo PS e envergonhadamente recalcado pelo PSD. A liberdade de Abril foi emancipadora; mas ela não foi e não é um “quintal” do PS, sobretudo quando esse quintal anda hoje tão cheio de ervas trepadeiras e daninhas.

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