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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​Os problemas do "wokismo"

19 abr, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


Os novos censores são tão (ou mais) insidiosos do que os antigos, porque são intolerantes, em nome de uma suposta defesa da tolerância, porque são uniformizadores, em nome de uma suposta defesa da diversidade, e porque prescrevem o pensamento único, em nome de uma suposta defesa do pluralismo.

Como um dia escreverão os manuais de História, foi no final da década de 2010 que o “wokismo” entrou a sério nas nossas vidas. Trata-se da tradução de “wokeism”, que vem da expressão “stay woke” (“fique desperto”, acordado, sensibilizado, etc.), e que reivindica a consciencialização, militância e denúncia de tudo o que possa diminuir, ofender ou oprimir as causas de justiça racial, identidade sexual (e igualdade de género), ativismo ambiental ou cultura grupal. A origem deste justicialismo difuso vem de trás, do “politicamente correto” do final do século XX, acelerado a partir de 2014 pelas militâncias do «Black Lives Matter» ou do «Me Too». Não pretendo analisar a pertinência das agendas identitárias ou políticas que se multiplicam ao sabor de indignações e alvos que as redes sociais fazem e desfazem. O meu objetivo é apenas o de chamar a atenção para um dos mais correntes instrumentos do wokismo - as censuras de “cancelamento” - e para o que estas implicam.

Os casos, mais ou menos anedóticos, sucedem-se: a reescrita de Roald Dahl, Ian Fleming ou Agatha Christie, a queima, real ou simbólica, dos álbuns de Tintim ou dos livros de Enid Blyton, a recusa de traduzir Afonso Reis Cabral para inglês, ou a caça às bruxas nas escolas e universidades anglo-saxónicas, onde, por exemplo, (já) se pode ser despedido por, numa aula sobre a arte renascentista, se mostrar a jovens adolescentes a imagem do «David» de Miguel Ângelo! Tudo isto se faz por comités de vigilância ou “leitores de sensibilidade” que outra coisa não são senão - usemos a palavra que julgávamos desaparecida no nosso meio democrático - censores.

Os novos censores são tão (ou mais) insidiosos do que os antigos, porque são intolerantes, em nome de uma suposta defesa da tolerância, porque são uniformizadores, em nome de uma suposta defesa da diversidade, e porque prescrevem o pensamento único, em nome de uma suposta defesa do pluralismo. Os males que advêm do wokismo só serão verdadeiramente percetíveis daqui a alguns anos - mas as sementes estão lançadas.

Desde logo, o wokismo instila um terrível presentismo amnésico, que faz tábua rasa dos contextos históricos de produção de opiniões, valores e textos, e que os julga merecedores de expiação e reparação a partir de causas que são atuais, que canibalizam a história para agenciamentos vanguardistas de hoje, cometendo anacronismos de principiante. Por isso, e ao fazer isto, a cultura do cancelamento liquida todo o sentido evolutivo e de progresso ou retrocesso que é útil conhecer, e que numa literatura ou imagética artificialmente depuradas não será mais possível encontrar, para descobrir e aprender - ao ponto de, um dia, os denunciadores do racismo ou da violência de género não poderem explicar o que combatem… porque em nenhum lado esse passado estará legível! Há, depois, um pernicioso paternalismo nos que julgam estar a combatê-lo, na forma como estabelecem (porquê e em nome de quê?) não só o que podemos - todos nós - ler, ver e pensar, mas como o devemos fazer. Acresce ainda, no wokismo mais radical, um incomensurável auto-centramento em novos “eus”: só eles interessam, só eles contam, só eles podem imaginar o futuro; e o futuro de todos tem de ser a conformação com o futuro que só eles determinam. A consequência final é a incapacidade de aceitar a diferença e de se relacionar com ela, ouvindo o outro e não o declarando, “ex-cathedra”, expoente ominoso dos mais variados pecados de uma humanidade que é, afinal, bem mais longa, diversa, problemática e complexa do que a linearidade tribalista dos “wokers” nos quer impor.

Comentários
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  • João Lopes
    20 abr, 2023 Porto 09:28
    Análise sensata e interessante.