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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​A Igreja no pelourinho

22 fev, 2023 • Opinião de José Miguel Sardica


Não há como relativizar ou suavizar o problema.

O conteúdo do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica causou natural e justificada repulsa entre os poderes e a opinião pública portuguesa. Para lá da crua importância dos números - 512 testemunhos validados e uma estimativa de 4815 vítimas - o que realmente importa é cada uma das vidas daqueles milhares de inocentes, manchadas para sempre com o trauma, a vergonha, a revolta ou a incapacidade de voltarem a confiar na Igreja ou a confiarem-se numa relação com outra pessoa.

Não há como relativizar ou suavizar o problema. Os abusos cometidos por membros do clero português sobre menores - confiados à sua guarda e educação espiritual, tantos deles em situação de fragilidade ou carência material e familiar - é particularmente grave, e repugnante na sordidez dos atos, pelas especiais responsabilidades de moralidade que têm de estar presentes em todos os membros da Igreja. Guardiã da mensagem cristã e evangélica da esperança, do aperfeiçoamento e da redenção dos seres humanos, e fundada sobre a dignidade fundamental da pessoa, a Igreja falhou duplamente, ao permitir que os seus membros assim pecassem e ao tolerar, encobrir e desvalorizar, durante demasiado tempo, as monstruosidades escondidas (e quantas não se revelaram?), até ser obrigada a fazê-lo, pela atitude corretiva da Santa Sé.

Posta a extrema gravidade do que foi revelado, vale a pena acrescentar três considerandos sobre este tempo e caso que coloca a Igreja no pelourinho da acusação e do julgamento públicos.

Em primeiro lugar, não é justo que alguns procurem fazer do pelourinho um autêntico auto-de-fé contra toda a Igreja Católica. A hierarquia é diversa, os seus membros muito díspares e, para lá do aparelho, ela é também a eclésia dos leigos, dos muitos católicos que se mobilizaram para enfrentar o problema e para condenar o que se destapou. A Igreja e os católicos portugueses tardaram a lidar de frente com a questão. Mas a sua determinação moral foi agora clara, e não precisaram que o Estado ou a justiça civil lhes viessem dizer o que fazer. A Comissão que produziu o relatório foi credível e independente e a Conferência Episcopal não tentou condicionar o seu trabalho, pese embora, registe-se, nem todos os bispos tenham respondido ao que lhes foi perguntado ou tenham facultado toda a documentação possível.

Em segundo lugar, em vez de profetizarem a por eles desejada extinção da Igreja, seria importante que os ativistas do anticatolicismo fossem tão exigentes em relação às instituições do Estado que guardam menores, ou aos contextos familiares onde grassam violadores, como o são em relação àquela. Infelizmente, a abjeta sordidez que aconteceu em sacristias, confessionários, catequeses, retiros, seminários ou colégios religiosos acontece também com inúmeros menores que estão entregues ao Estado (e não tem ele, mesmo laico, de ser também pessoa de bem?), ou que vivem em contextos familiares desfeitos, onde a miséria, a promiscuidade, o vício ou a pura maldade imperam, e onde melhores políticas públicas não chegam.

Finalmente, o mais importante está para vir. Na teologia católica, o pecado é remido pelo arrependimento e pela reparação. É preciso, portanto, que, para lá das orações de penitência pelas vítimas e dos eventuais processos legais do que ainda não prescreveu, a Igreja saiba compensar e redignificar as vítimas, e punir os prevaricadores e cúmplices, com um zelo purificador ainda maior do que aquele que guiou Cristo quando expulsou os vendilhões do Templo.

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