Emissão Renascença | Ouvir Online
José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
A+ / A-

Viver e morrer em Portugal

14 dez, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


A partir do momento em que realidades tão complexas como a da vida e morte são reduzidas à esquadria de uma lei, haverá que lembrar que toda a lei é factível e alterável ao sabor dos poderes do momento. Não sendo jurista, parece-me que o diploma padece de alguns simplismos.

Em 2018, quando o projeto-lei para a despenalização da eutanásia foi chumbado pelo parlamento português, os seus proponentes lamentaram o resultado da votação, por considerarem que a conquista desse direito era um separador de águas entre a “dignidade” e o “obscurantismo”, a “democracia” e a “sacristia” (sic!).

Quatro anos volvidos, e à terceira tentativa – depois de, há uns meses, o Presidente da República ter suscitado dúvidas sobre a constitucionalidade do diploma – a lei da eutanásia foi finalmente votada. Os adeptos das causas fraturantes, que, neste como noutros temas (vide o aborto), raciocinam de forma maniqueísta, do alto de um libertarianismo radical que absolutiza as prerrogativas do “eu” acima de qualquer outro considerando, reserva ou prudência, exultaram com o desfecho.

É possível que o assunto ainda não esteja encerrado, já porque tanto o presidente como grupos de deputados podem requerer a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o diploma, já porque, no futuro – e à semelhança do que a esquerda fez em relação ao aborto – a direita poderá um dia, com uma maioria sua, reverter o que agora ficou votado. A partir do momento em que realidades tão complexas como a da vida e morte são reduzidas à esquadria de uma lei, haverá que lembrar que toda a lei é factível e alterável ao sabor dos poderes do momento…

Não sendo jurista, parece-me que o diploma padece de alguns simplismos, não sendo ali clara a distinção entre eutanásia, ortotanásia (a recusa terapêutica) e distanásia (a obstinação terapêutica), e permanecendo subjetiva a avaliação do que se considera ser a “linha vermelha”, de incurabilidade, gravidade e sofrimento, além da qual a suposta misericórdia de ajudar alguém a pôr termo à vida é aceitável e legal; para além de que, confundindo dignidade e autonomia individuais com um direito a assegurar por outrem (o Estado), a lei poderá abrir uma caixa de pandora, permitindo encarar como eutanasiável uma depressão mental (como já acontece, por exemplo, na Bélgica!).

Não é, contudo, sobre o aspeto técnico-jurídico do que agora se aprovou que me quero pronunciar, mas sobre o que esta lei diz do nosso Estado e governo, da nossa sociedade, dos nossos valores e prioridades no presente. Há meses – na verdade há anos – que o sistema de saúde português revela preocupantes sinais de esgotamento: os médicos e enfermeiros vivem no limite das suas capacidades, faltam meios, as urgências são um caos e um escândalo em tempos de atendimento e (indignas) condições de acolhimento, e as listas de espera mostram-se infindáveis em diversas especialidades. Em 2022, há 200 mil portugueses a aguardar cirurgia, dos quais quase 50 mil há mais tempo do que o clinicamente fixado. Todos os meses, senão todas as semanas, há episódios de pedidos de escusa de responsabilidade por parte dos profissionais de saúde, e são notícia os fechos de urgências, com a triste ironia de eles nem sequer pouparem a área da obstetrícia. Atente-se, pois, nisto: o mesmo Estado que agora decretou o direito a morrer, não cuida dessoutro direito – mais impactante no futuro da sociedade – que é o direito a nascer, em segurança e em condições; e o mesmo Estado que se propõe fixar prazos legais curtos para a tramitação de um processo de eutanásia, para isso convocando tanto o SNS, como os privados ou o setor social, deixa reinar a incúria a montante do fim (da vida), não cuidando de atender a quem nasce, a quem cresce, a quem adoece, a quem envelhece, a quem palia e a quem cuida. Quando a morte merece mais desvelo (legislativo e de recursos) do que a vida, é tempo de nos perguntarmos se as prioridades de quem governa não estarão erradas.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.