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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Vermelhos e azuis: guerra ou cooperação

16 nov, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


O eleitorado americano votou pressionado por problemas novos: a inflação, o aumento do custo de vida, a ameaça da crise energética, o problema do papel dos EUA perante a Rússia e a Ucrânia, o difícil pós-pandemia.

A eleição do 118.º Congresso dos EUA, na semana passada, teve resultados que muitos acharam surpreendentes. Por norma, o escrutínio intercalar que ocorre a meio de um mandato presidencial castiga o partido a que pertence o presidente e o governo. Daí que, da mesma maneira que os “azuis” (cor dos democratas) ganharam as intercalares de 2018, esperava-se agora uma “onda vermelha” (cor dos republicanos). O resultado deveria, aliás, servir de impulso para a recandidatura de Donald Trump à Casa Branca em 2024 (à hora a que escrevo, no dia 15, Trump ainda não falou). Não foi isso que aconteceu. Os azuis tiveram a melhor performance de um partido presidencial desde 1950: seguraram a maioria no Senado e perderam por poucos (uma margem de uns 10 lugares em 435) na Câmara dos Representantes. Joe Biden é um vencedor sobretudo aliviado; Donald Trump é um claro perdedor. E esta simples diferença pode vir a fazer, no futuro imediato, toda a diferença na política americana.

O eleitorado americano votou pressionado por problemas novos: a inflação, o aumento do custo de vida, a ameaça da crise energética, o problema do papel dos EUA perante a Rússia e a Ucrânia, o difícil pós-pandemia. Trump é populista, radical, truculento, divisivo – além de negacionista do resultado das eleições de 2020 e cúmplice moral do assalto ao Capitólio em janeiro de 2021. De líder incontestado em 2016, tornou-se, depois de vencido nas intercalares de 2018, nas presidenciais de 2020 e nestas intercalares de 2022, um incómodo para os republicanos que querem alijar a sua liderança e influência, em nome de um recentramento dos “vermelhos” – mais credível para um projeto de vitória moderada em 2024, talvez com Ron DeSantis, a nova estrela em ascensão que, sem surpresa, Trump já começou a atacar, por não tolerar quem lhe dispute a pretendida nomeação como futuro candidato presidencial.

No novo Congresso, os republicanos têm poder para obstruir a governação de Biden: a iniciativa legislativa depende do acordo das duas câmaras e, nos Representantes, haverá votações de bloqueio e a maioria republicana vai dali lançar, com certeza, investigações parlamentares ao presidente e ao governo; mas dificilmente conseguirá aprovar “shutdowns” financeiros ou legislação ultraconservadora sobre o aborto ou questões climáticas, bloquear a nomeação de juízes ou funcionários superiores, ou alterar de forma drástica o alinhamento de Washington com Kiev. É verdade que, do lado azul, também há um radicalismo que espreita: o do movimento “woke”. Os EUA são um país de clivagem eleitoral bastante vincada e os radicalismos que se abrigam nas caudas (ou no centro) dos dois partidos extremaram ainda mais as posições.

Ainda assim, as eleições de 2022, no contexto difícil em que vivem os EUA e o mundo, poderão ser um ponto de partida para uma política mais inclusiva, de reconciliação, ou ao menos de maior colaboração, para problemas que requerem todas as energias nacionais. Mitt Romney, o candidato republicano à Casa Branca em 2012, já veio sublinhar que os republicanos (e o recado também era para os democratas) têm duas estradas possíveis a percorrer no novo Congresso: a mais tentadora e mais frequente, do entrincheiramento, das ameaças e da divisão; ou aquela “less travelled by”, que é a de trabalharem e a de cooperarem para melhorar a condição socioeconómica dos americanos. Só pode ser este o caminho – o da moderação centrípeta, que tanta falta faz à cultura política democrática atual. E trilhá-lo seria reatualizar a mensagem do grande presidente republicano Abraham Lincoln, que um dia disse, referindo-se aos EUA: “uma casa dividida contra si mesma não poderá sobreviver”.

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