19 out, 2022
Podem as palavras que pronunciamos criar a realidade que queremos que exista? Tem o discurso o poder demiúrgico de produzir o mundo em que nos movemos? Desde a chamada “viragem linguística”, que chegou ao campo das humanidades e das ciências sociais há já bem meio século e, sobretudo, na epistemologia pós-moderna, acredita-se que sim. Acredita-se, aliás, como corolário disto, que nada há senão “discurso” e que não existe, portanto, qualquer realidade granítica e incontornável para lá do que dizemos sobre as coisas. Isto parece uma charada, mas tem consequências bem palpáveis…e complicadas.
Em política, e para as esquerdas portuguesas, o discurso é tudo, porque o que interessa são as “narrativas” com que se determina a forma como todos devem perceber o real, independentemente de elas serem verdadeiras ou falsas e de a realidade as confirmar ou infirmar. Por isso, as esquerdas vivem no paraíso dos eufemismos e das linguagens inclusivas. Começou-se pela substituição do cego pelo invisual ou do velho pelo idoso e já se vai nos “seres gestantes” em vez de mães e nos “centros de nascimento” em vez de maternidades. Nestes domínios, o disparate é infindável.
Partidariamente, que é o que me interessa, o PCP não vê a absoluta realidade da guerra invasora, destrutiva e desumana da Rússia na Ucrânia, mas antes a “operação especial” e a necessidade (de que se faz campeão) da “paz”. Já o Bloco de Esquerda, por causa do colapso eleitoral deste ano, não faz despedimentos de pessoal do partido, antes “ajusta a estrutura”. O PS, esse, diz jamais à austeridade, que é sempre o pecado egoísta e classista dos sádicos políticos de direita, e jura que as suas cativações, desinvestimentos e reestruturações de serviços não são contrativos, mas expansivos. Ao apresentar o Orçamento para 2023, António Costa e Fernando Medina garantem que pode o mundo entrar em recessão; a exceção será Portugal, embora a matemática (que não permite “narrativas”) não explique como isso é possível ou como é que, com inflação superior aos seus idílicos cenários, não irá haver (ai vai, vai!) redução do salário nominal e do poder de compra. “Facts, dear boy, facts”, pedia Churchill aos seus assessores para os seus discursos: e o facto, que discurso algum pode mascarar, e ainda menos transformar, é que os portugueses vão viver pior em 2023.
António Costa e os seus não sabem isto? Sabem. São mentirosos compulsivos? Não são. Simplesmente, desde António Guterres, porventura escaldado com os dez anos que o aperto de cinto de Mário Soares (no Bloco Central) ofereceu a Cavaco Silva, o PS é ideologicamente, geneticamente, medrosamente incapaz de falar verdade – dura que ela seja – aos portugueses. Isso seria destruir a sua própria narrativa do último quarto de século, e o PS está prisioneiro dela. Que narrativa? A de que a crise só vem com a direita austeritária – quando os factos mostram que a “tanga” constatada por Durão Barroso vinha do despesismo de Guterres, que a bancarrota de 2011 foi um produto de Sócrates e que a pandemia, a guerra, a inflação e o crash energético do presente apanham o país fragilizado porque Costa desbaratou o trabalho de recuperação de Passos Coelho, adiando reformas vitais e presenteando apenas clientelas fiéis.
O PS não governa dizendo “que se lixem as eleições!”; governa para segurar o poder e a pensar nas próximas eleições. Tem sorte com o país que pastoreia, porque os portugueses parecem não apreciar quem lhes diz a verdade. Mas foi assim que, na pior hora socioeconómica dos EUA, mergulhados na Grande Depressão pós-1929, Franklin Roosevelt ganhou a eleição a Herbert Hoover. Outros tempos, outros homens.