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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O último Habsburgo

06 abr, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


A preparação de uma conferência recente e uma viagem, com bons amigos, ao Funchal no passado fim-de-semana pôs-me na esteira da vida de Carlos de Habsburgo, o último soberano do império Austro-Húngaro. Um século exato após a sua morte, na ilha da Madeira, a vida do último Habsburgo é uma utilíssima lição de história. Nascido na Áustria, em 1887, Carlos tornou-se monarca por acidente e no pior momento possível.

Tragédias sucessivas entre os Habsburgos fizeram dele sucessor direto do seu tio-avô, o velho imperador Francisco José. Quando este morreu, em novembro de 1916, o inexperiente príncipe herdou um trono multinacional, cindido por rivalidades territoriais, étnicas e religiosas, e mergulhado na destruição da I Guerra Mundial, onde a Áustria-Hungria integrava o eixo das chamadas Potências Centrais, capitaneado pela belicista Alemanha do Kaiser. No tempo político que ainda lhe restou, Carlos de Habsburgo quis sempre abreviar o apocalipse que martirizava os seus povos e outros, para lá das suas fronteiras. Como cristão, católico, político, pai, homem e ser humano – e em todas estas dimensões as suas virtudes e retidão eram reconhecidas – repugnava-lhe a realidade da guerra, cujo principal fruto, então, hoje e sempre, era e é a morte de incontáveis vidas. E enquanto tudo fazia para minorar os sacrifícios da população austro-húngara, foi o único político da I Guerra Mundial a realizar esforços palpáveis para alcançar a paz, oferecendo-a à França, com a qual a sua mulher, a imperatriz Zita de Bourbon-Parma, era aparentada.

Clémenceau não o quis, e virou-lhe as costas; Guilherme II, querendo uma vitória a todo o custo, não lho permitiu. E a Grã-Bretanha, ou os EUA, não apreciavam o trono católico dos Habsburgos. Esgotada, a Áustria-Hungria acabou a Guerra como parceiro sacrificado da Alemanha do Kaiser. Acresce que a derrota de 1918 impediu também o soberano austro-húngaro de levar a cabo uma reforma descentralizadora, federalizante e modernizadora da sua própria malha imperial, que teria decerto revitalizado a união dos muitos povos da Europa que retalharam o império numa multiplicidade de novos Estados.

O “finis Austriae” foi também o fim de uma Europa Central unida na humanidade do seu cristianismo partilhado, abrindo as portas a que essa vasta área do continente fosse, no futuro, palco das atrocidades expansionistas da Alemanha nazi, da URSS comunista…e dos nostálgicos neo-czaristas que para ali hoje lançam os seus olhos (Lviv, na atual Ucrânia, era uma cidade do império austro-húngaro…).

Destronado em Viena, Carlos, Zita e os filhos iniciaram, no outono de 1918, um calvário de exílios e perseguições, da Áustria para a Suíça, desta para duas tentativas frustradas de reganhar o seu trono húngaro e para a custódia à guarda da Grã-Bretanha, que o conduziu do Mar Negro para o seu último destino, o Funchal. Aportado à Madeira em novembro de 1921, o ex-imperador ali encontrou gente hospitaleira e acolhedora, que simpatizou com a sua personalidade gentil, discreta, abnegada e caridosa. Tragicamente, o exílio no Funchal seria ensombrado por grandes dificuldades materiais e pela doença – uma pneumonia viral – de que viria a morrer, na conhecida Quinta do Monte, a 1 de abril de 1922, com 34 anos. Os seus restos mortais repousam, desde então, na vizinha Igreja de Nossa Senhora do Monte. Exemplo de devoção católica, de moral pacifista e de educação familiar, Carlos de Habsburgo demonstrou possuir uma nobreza de caráter e de comportamento humano, tanto no poder quanto fora dele, que deve, olhando os tempos incertos e beligerantes de hoje, servir de lição a todos os que procuram a paz por entre as guerras.

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