A História não é apenas arquivo, crónica ou fait-divers. Acima disso, tem de ser uma maneira de pensar, uma chave de compreensão, conferindo espessura – tempo e espaço – àquilo que aborda. A guerra russo-ucraniana, iniciada há duas semanas, já constitui um daqueles acontecimentos complexos que irá marcar o presente e o futuro, a partir da sensação, que todos temos, de que alguma coisa mudou no mundo no dia 24 de fevereiro de 2022. De repente, uma geografia longínqua, com cidades e regiões de nomes estranhos, encheu noticiários repletos de imagens julgadas impossíveis na Europa pós-1945 (ou pós-1995, se lembrarmos a guerra nos Balcãs), e de mapas da Ucrânia e países limítrofes, tudo enquadrado pelas explicações de especialistas pluridisciplinares. A epidemia desapareceu, a governabilidade do país está congelada.
Tudo conduz à guerra na Ucrânia – até a economia e a vida quotidiana, onde o preço da energia, dos combustíveis e dos abastecimentos galopa…por causa da reação dos mercados à agressão da Rússia a um país vizinho. De facto, a nova guerra pôs todos a falar da geografia das esferas de influência, das balanças de poderes, das ideologias nacionalistas, dos traumas e fantasmas da relação entre Moscovo e Kiev. E só a História pode servir de fio agregador e esclarecedor ao que, sem passado, (a)parecerá apenas como explosão momentânea e absurda.
Porque é que a Rússia de Putin não tolera (para lá da eventual presença ou influência da NATO ou da UE na sua zona limítrofe) a simples existência da Ucrânia (e não só os russófonos do Donbass viverem sob outra bandeira)? Porque foi Kiev e não Moscovo a sede da Rússia alto-medieval; porque a Ucrânia foi, durante séculos, semi-polaca, semi-lituana e cossaca, mas não eslavo-russa; porque, russificada por fim no século XIX e sovietizada no século XX, só acedeu à independência com o colapso da URSS, um “deslize” que Putin quer emendar. Tudo isto é da História, agora tornada presente.
E porque é que a Ucrânia, da revolta de Maidan a Zelensky, não aceita a tutela russa? Porque os ucranianos não são ou não se sentem eslavos; porque durante séculos tiveram laços económicos, culturais e políticos com a Europa central e não com a euro-Ásia dos czares e do Kremlin; porque sofreram, sob Estaline, o horrendo Holodomor, o Terror-Fome dos anos 1930; porque recusam ser esmagados perante o (novo) “exército vermelho”, como Budapeste e Praga foram, em 1956 e em 1968, diante da solidariedade impotente do Ocidente; porque querem ser, e têm legitimidade em querê-lo e dizê-lo, independentes e livres, como os portugueses face aos espanhóis ou os irlandeses face aos ingleses. Tudo isto é da História, agora tornada presente.
O presente da guerra russo-ucraniana revela o pior de Putin. A Rússia é agora um pária internacional, como já o foi o Iraque de Saddam Hussein, com a agravante de ser mais poderosa e mais desapiedada. Em 2022, três quartos de século depois da II Guerra Mundial, a invasão e a possível aniquilação completa (política e física) de um outro Estado soberano é uma agressão inaceitável e indesculpável. Talvez semeando ventos, Putin venha a colher tempestades, como o Japão em 1945; ou talvez a campanha na Ucrânia seja o passo longe demais, a “némesis” do vilão internacional, como Hitler experimentou um dia. E talvez a unidade da Europa e do mundo democráticos se tenha agora reforçado, mesmo que a duríssimas penas, alentando os decisores do mundo livre a serem como Churchill e nada como Chamberlain, não oferecendo (nunca) mais a Putin a estratégia inútil e/ou suicida do apaziguamento. Por ora, a julgar pelo passado recente da Crimeia, o futuro próximo da Ucrânia é negro.