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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O regresso da História

09 mar, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


A guerra russo-ucraniana, iniciada há duas semanas, já constitui um daqueles acontecimentos complexos que irá marcar o presente e o futuro.

A História não é apenas arquivo, crónica ou fait-divers. Acima disso, tem de ser uma maneira de pensar, uma chave de compreensão, conferindo espessura – tempo e espaço – àquilo que aborda. A guerra russo-ucraniana, iniciada há duas semanas, já constitui um daqueles acontecimentos complexos que irá marcar o presente e o futuro, a partir da sensação, que todos temos, de que alguma coisa mudou no mundo no dia 24 de fevereiro de 2022. De repente, uma geografia longínqua, com cidades e regiões de nomes estranhos, encheu noticiários repletos de imagens julgadas impossíveis na Europa pós-1945 (ou pós-1995, se lembrarmos a guerra nos Balcãs), e de mapas da Ucrânia e países limítrofes, tudo enquadrado pelas explicações de especialistas pluridisciplinares. A epidemia desapareceu, a governabilidade do país está congelada.

Tudo conduz à guerra na Ucrânia – até a economia e a vida quotidiana, onde o preço da energia, dos combustíveis e dos abastecimentos galopa…por causa da reação dos mercados à agressão da Rússia a um país vizinho. De facto, a nova guerra pôs todos a falar da geografia das esferas de influência, das balanças de poderes, das ideologias nacionalistas, dos traumas e fantasmas da relação entre Moscovo e Kiev. E só a História pode servir de fio agregador e esclarecedor ao que, sem passado, (a)parecerá apenas como explosão momentânea e absurda.
Porque é que a Rússia de Putin não tolera (para lá da eventual presença ou influência da NATO ou da UE na sua zona limítrofe) a simples existência da Ucrânia (e não só os russófonos do Donbass viverem sob outra bandeira)? Porque foi Kiev e não Moscovo a sede da Rússia alto-medieval; porque a Ucrânia foi, durante séculos, semi-polaca, semi-lituana e cossaca, mas não eslavo-russa; porque, russificada por fim no século XIX e sovietizada no século XX, só acedeu à independência com o colapso da URSS, um “deslize” que Putin quer emendar. Tudo isto é da História, agora tornada presente.
E porque é que a Ucrânia, da revolta de Maidan a Zelensky, não aceita a tutela russa? Porque os ucranianos não são ou não se sentem eslavos; porque durante séculos tiveram laços económicos, culturais e políticos com a Europa central e não com a euro-Ásia dos czares e do Kremlin; porque sofreram, sob Estaline, o horrendo Holodomor, o Terror-Fome dos anos 1930; porque recusam ser esmagados perante o (novo) “exército vermelho”, como Budapeste e Praga foram, em 1956 e em 1968, diante da solidariedade impotente do Ocidente; porque querem ser, e têm legitimidade em querê-lo e dizê-lo, independentes e livres, como os portugueses face aos espanhóis ou os irlandeses face aos ingleses. Tudo isto é da História, agora tornada presente.
O presente da guerra russo-ucraniana revela o pior de Putin. A Rússia é agora um pária internacional, como já o foi o Iraque de Saddam Hussein, com a agravante de ser mais poderosa e mais desapiedada. Em 2022, três quartos de século depois da II Guerra Mundial, a invasão e a possível aniquilação completa (política e física) de um outro Estado soberano é uma agressão inaceitável e indesculpável. Talvez semeando ventos, Putin venha a colher tempestades, como o Japão em 1945; ou talvez a campanha na Ucrânia seja o passo longe demais, a “némesis” do vilão internacional, como Hitler experimentou um dia. E talvez a unidade da Europa e do mundo democráticos se tenha agora reforçado, mesmo que a duríssimas penas, alentando os decisores do mundo livre a serem como Churchill e nada como Chamberlain, não oferecendo (nunca) mais a Putin a estratégia inútil e/ou suicida do apaziguamento. Por ora, a julgar pelo passado recente da Crimeia, o futuro próximo da Ucrânia é negro.

Comentários
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  • Digo eu
    09 mar, 2022 Que já vi este filme 20:46
    A meu ver, os principais culpados ainda são as Merkels e os lideres europeus de pacotilha, que dormiam embalados pela ideia de fazer negócios com a Rússia, sem atentarem que palmo a palmo, este cão do Putin reconstruiu exército, retomou ideias imperiais, e aqueles espécimes de lideres políticos puseram-se a jeito, dependentes da Rússia em combustíveis e algumas matérias-primas essenciais só porque era mais barato, nem sequer acordaram com Chéchénias, Geórgias, Crimeias, atentados em solo Europeu, eliminação física de opositores, desvio de aviões civis e prisão de dissidentes, nada... Encolheram os ombros e toleraram tudo. Assobiaram para o lado a fingir que não viam nada. Agora vendo a m**da que fizeram, estão caladinhos que nem ratos, mas tudo isto aconteceu "no turno deles", e quem está a paga-las é a Ucrânia e os Ucranianos. E há-de chegar ao Ocidente.
  • António José G Costa
    09 mar, 2022 Cacém 10:39
    A existência de armas nucleares coloca a Humanidade cada vez mais em perigo. A subida ao poder de um país com potencial nuclear, de um qualquer doido megalomano é só uma questão de tempo. E a bomba H é muito mais potente, do que as bombas usadas no final da II Grande Guerra. 1000x mais potente, infelizmente (megatoneladas vs kilotoneladas das da 2° grande guerra)