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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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A «Noite Sangrenta»

20 out, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


Foi o episódio mais espetacularmente violento do curso, muito acidentado, da I República. Depois do populismo messiânico de Sidónio, que acabou à bala, em dezembro de 1918.

Os políticos e os sociólogos gostam de referir Portugal como um país de “brandos costumes”. Convém matizar essa imagem idílica e reparar que, durante muito tempo, no passado nacional, o atraso social, a penúria económica, a rudimentaridade da lei e da ordem e as disputas político-partidárias suscitaram levantamentos, confrontos, tumultos e até guerras civis que, para citar o livro de Diego Palacios Cerezales, trouxeram “Portugal à coronhada”.

Olhando apenas o século XX, revolucionarismos, anarquias várias, repressões ou supostas conspirações assassinaram um rei (D. Carlos), um presidente (Sidónio Pais), um candidato presidencial (Humberto Delgado) e talvez até um primeiro-ministro (Sá Carneiro). A estes quatro, deve somar-se um outro alto titular político: o primeiro-ministro António Granjo, abatido (é o termo) na célebre e ominosa «Noite Sangrenta», há um século exato, de 19 para 20 de outubro de 1921.

A «Noite Sangrenta» foi o episódio mais espetacularmente violento do curso, muito acidentado, da I República. Depois do populismo messiânico de Sidónio, que acabou à bala, em dezembro de 1918, o regime tentou, em vão, regressar aos melhores anos do pré-I Guerra Mundial. Mas no início da década de 1920, a crise, a instabilidade e a perturbação generalizada da ordem pública campeavam sem controlo, enquanto o poder rodava entre radicais, centristas e conservadores, com crescente ingerência dos militares e da muito politizada GNR.

No final de agosto de 1921, tomou posse o gabinete conservador de António Granjo, recebido com extrema hostilidade por uma frente comum de democráticos “enragés”, de populares arruaceiros (a Lisboa rufia do tempo), de sindicalistas, pequenos oficiais da marinha e “liberatistas” da GNR. Perante a recusa do democratismo respeitável em escorar o governo, e patente a incapacidade presidencial, de António José de Almeida, de fazer o mesmo, Granjo apresentou a sua demissão a 19 de outubro. Nessa noite, um conjunto de populares sem rosto nem filiação identificáveis correu Lisboa, na “camionete-fantasma”, perpetrando um bárbaro massacre. António Granjo foi capturado em casa de Cunha Leal, levado para o Arsenal da Marinha e assassinado pela turba a tiro e à baioneta. Durante a curta viagem, um dos raptores lançou logo o desafio ao coletivo: “Rapaziada, fura-se o gajo já aqui?” (sic). Foram também capturados e assassinados Machado Santos, José Carlos da Maia, Freitas da Silva e o coronel Vasconcelos e Sá, nomes ligados ao 5 de Outubro ou ao Sidonismo. Não é impossível que houvesse mesmo uma lista de alvos a abater, com mais gente importante, que se protegeu ou fugiu como pôde naquelas horas. Foi o caso, por exemplo, do conhecido industrial Alfredo da Silva, o patrão da CUF, que escapou, ferido, por pouco, a um linchamento em Leiria.

À portuguesa, os crimes da «Noite Sangrenta» nunca tiveram investigação adequada, apuramento de responsabilidades, processo judicial e condenações. Tudo ficou na penumbra, na inércia, no medo. Mas o radicalismo terrorista do ato feriu ainda mais uma República moribunda, desde a I Guerra Mundial e do Sidonismo até ao momento em que os militares, em 1926, avocando uma pretensão nacional salvífica, puseram fim ao que depois (“et pour cause…”) Salazar e outros chamariam a “balbúrdia sanguinolenta”.

Brandos costumes? Nem tanto. A «Noite Sangrenta» cimentou a imagem do regime português como uma espécie de República de Weimar latina, ingovernável depois de esgotado o élan inicial. A moral a retirar da história é simples: às repúblicas que traem a democracia, a liberdade e a ordem, sucedem normalmente aqueles que, para restaurarem a ordem, liquidam a liberdade e a democracia.

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  • António J G Costa
    21 out, 2021 Cacém 22:39
    Em situações dramáticas, como a que descreve, a brandura parece mais ter cedido à cobardia. Nos tempos atuais, também a "tolerância" é mais ignorância, do que outra coisa. O acesso quase ilimitado à informação, devia ter levado a uma sociedade mais esclarecida. Enfim, fez bem em "recordar" esse triste evento...no fundo quando se 'esquece" a História tende-se a repeti-la.