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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Tintim e os queimadores de livros

06 out, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


Das estantes para a fogueira foram vários álbuns de banda desenhada de Tintim, o herói criado pelo belga Hergé. Nos EUA e noutras paragens, sempre em defesa do “índio”, do “esquimó”, dos “peles vermelhas”, dos “pretos”, ou contra a “sexualização de mulheres indígenas” já se censuraram ou fizeram desaparecer Astérix, Lucky Luke ou Pocahontas.

Lisboa não é o Canadá. E ainda bem. Numa escola do Canadá, país próspero, híper civilizado, esclarecido e tudo o mais, Suzy Kies, ativista da cultura do “cancelamento” e membro do partido do primeiro-ministro Trudeau, levou a cabo uma cerimónia de queima de livros, destinada a “enterrar as cinzas do racismo, da discriminação e dos estereótipos”. Das estantes para a fogueira (um belo exemplo de vandalismo para as crianças que assistiram ao ritual!) foram vários álbuns de banda desenhada de Tintim, o herói criado pelo belga Hergé. Ali, nos EUA e noutras paragens, sempre em defesa do “índio”, do “esquimó”, dos “peles vermelhas”, dos “pretos”, ou contra a “sexualização de mulheres indígenas” (hoje chamados “primeiros povos”, de preferência a “nativos”), já se censuraram ou fizeram desaparecer Astérix, Lucky Luke ou Pocahontas. E também as figuras da Walt Disney ou da Marvel Comics foram passadas pelo crivo da desconstrução de qualquer sombra de “masculinidade tóxica”.

Em Lisboa, este vento de loucura ainda não sopra com toda a intensidade. Por isso, o visitante pode (e deve) ir à Fundação Gulbenkian onde está patente uma maravilhosa exposição sobre o mundo de Hergé e de Tintim, com direito ao icónico foguetão axadrezado nos jardins. Se estivéssemos no Canadá, já haveria acusações à Gulbenkian de estar a promover um desenhador “racista” e, talvez, manifestações à porta, com pichagens na parede e insultos na bilheteira. Porque é assim que os censores “iluminados” de hoje se comportam. Queimar livros de outros tempos, com outras ideias e que falam de outros mundos não é só (e isso já seria desqualificador) reificar um gesto medieval, inquisitorial, nazi-fascista ou comunista; é, na verdade, uma atitude totalitária, contraproducente e profundamente ignorante.

É totalitária porque impõe, do nosso fugidio presente a todas as eras sedimentadas da história, um cânone parcial, ativista, sectário, que se sabe onde começa, mas que, pela sua própria dinâmica de tábua rasa desrespeitadora do passado, não se imagina onde e como acabará. No limite, tudo, no passado humano, pode ser desconstruído e negado, porque o passado, como se diz em história, é um “país diferente”. A cultura woke é um novo jacobinismo: não entende a linearidade evolutiva do tempo, os valores contextuais de cada época, a lógica de compreender, em vez de julgar com anacronismo. Ali não há passado: só um presente vingador, incapaz de preparar um futuro com raízes.

É contraproducente, porque, muito mais “pedagógico” do que qualquer queima é…a leitura do que (erradamente) se queima. Se queremos discordar (de maneira civilizada) temos de conhecer. É por isso que o repúdio do nazismo requer a leitura do Mein Kampf e a do comunismo a do Livro Vermelho, tal como poderá ser lendo (e vendo) Tintim que a miudagem será introduzida no universo do eurocentrismo em que Hergé se movia, na sua Bélgica natal das décadas centrais do século XX. A queima não “purifica”; só obscurece, alimentando tribalismos.

Resta que mandar queimar os álbuns de Tintim sob a acusação de que são mostruários da perversidade racista do Ocidente é atitude ignorante – a roçar, diga-se mesmo, a estupidez.

Para os wokers que se dizem arautos da interculturalidade e do necessário respeito e abertura do europeu branco ao “outro”, aconselho vivamente que leiam (e apreciam a genialidade do traço e da cor), o álbum O Loto Azul e a lindíssima lição humana de empatia ali dada pela amizade entre Tintim e Chang, o jovem chinês que reaparecerá noutra aventura, a de Tintim no Tibete. Leiam, deleitem-se, pensem e aprendam, em vez de serem obtusos e de queimarem livros!

Comentários
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  • Pedro Botelho
    07 out, 2021 Porto 08:02
    Parabéns pelo seu excelente artigo! Mas atenção, José Miguel, ainda o expulsam de escrever na Renscença. É que a igreja católica e o seu chefe, o papa Francisco, pertencem e estimulam a sociedade "maravilhosa" (totalitária horrível) que os censores querem e estão a implementar no mundo. A santa Sé não nos tem protegido disso. Muito pelo contrário (cavalga esta onda de populismo intolerante esquerdista do politicamente correcto, talvez com medo de perder fieis)!
  • António J G Costa
    06 out, 2021 Cacém 15:02
    Os escritores, as obras de arte, pertencem sempre a uma época. Isso passa-se com Tintin e com o seu criador Hergé. Tenho uma coleção dos carros do Tintin, em miniatura. Além da coleção dos livros do Tintin, possuo e li livros sobre Hergé e a sua obra. Não sejamos anjos, Tintim "aparece" antes da II grande guerra. É contemporâneo da ocupação nazi, da Bélgica. O "Segredo do Licorne" é uma história de piratas, em que um barco de algumas dezenas piratas, captura um barco de guerra francês cheio de canhões...algo não " bate certo". Os piratas atacavam navios mercantes e não barcos de guerra....Enfim. O livro de BD, o Segredo do Licorne vai ser impresso e editado na Bélgica em plena ocupação nazi. Onde faltava quase tudo....Tintin e Herge representam uma época histórica, recente na Europa e no Mundo. O livro de BD, "O Loto Azul" que é referido no artigo é uma descrição preciosa sobre a China, antes da chegada ao poder dos comunistas. Uma China ocupada pelo Japão e pelas "concessões internacionais". Tintin alia-se à resistência chinesa e tem um amigo chinês. Mais tarde, em "Tintim no Tibete" essa amizade, volta a ser reafirmada. A "talibã imberbe" Suzy Kies tem menos desculpa que os seus congêneres afegãos, que destruiram as estátuas de Buda. Estes foram educados, desde pequenos em madrassas, longe de qualquer influência Ocidental. Destruir aquilo que não se entende. Apenas isso.
  • B S
    06 out, 2021 Vila do Conde 08:41
    Bom dia! Mas senhor articulista, tenha calma e atenção! Nós cá também temos gente desta nova "escola" e a tentar fazer escola! Temos organizações políticas radicais por todos conhecidas, em representação nossa - imagine-se! - a importarem e fazendo claramente a defesa dessa apologia de toda essa "sub-cultura". Viu-se, por exemplo, com um caso grave, sim, de um fulano - George Floyd- , onde uma grande parte dos nossos jornalistas "pensadores", e fazedores de opinião, urravam insultos de racismo a todo um país! O nosso! A sociedade portuguesa, "...e o seu racismo latente"! Essas luminárias, pseudo intelectuais de esquerda - diga-se de passagem, cada vez mais ajavardada, hedonista e jacobina, importou uma problemática social brutal de um país -EUA - para a nosso país. A sanha persecutória e a pulsão proibitiva desta gente, ao outro, que não comunga da sua ideologia, é uma constante. O insulto a ferramenta do dia-a-dia. É-nos hoje muito difícil ter espaços de discussão moderados, com debate de opiniões fundamentados em Factos!! Para esses hippies toxicodependentes ( à espera da despenalização geral), a percepção é tudo, os Factos são nada. Mas diga-se de passagem, que o mal é geral! Em toda a Europa é também assim. Entretanto, os nossos líderes europeus, imbuídos numa Europa de valores!! lá vão negociando com os talibãs! Mas faz sentido! Também os temos cá, como vimos! Usam é uma diferente sharia! Negros dias nos esperam, senhor articulista, negros dias.