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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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As conferências do Casino

23 jun, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


Realizadas há 150 anos, em maio-junho de 1871, as conferências do Casino Lisbonense foram uma das páginas mais conhecidas da história cultural portuguesa, lançando para a fama pública a chamada Geração de 70, um notável conjunto de jovens literatos onde se distinguiam Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Teófilo Braga.

Todos amigos e todos contestatários, os jovens vinham maturando uma militância literária e estética que era também um combate cívico e ético contra o panorama de incerteza – financeira, económica, política, institucional, social, até – que parecia atravessar o Portugal do tempo. Rumando contra a “paz podre” da Regeneração e o adormecimento dos portugueses no “pão e circo” dos melhoramentos materiais do fontismo, a Geração de 70 queria “acordar tudo aquilo (o país) a berros”, como escreveu Eça, renovando o pensamento, a cultura, a educação e a energia nacionais com as ideias novas que agitavam a Europa de então – a democracia, o racionalismo, o positivismo, o realismo ou o republicanismo. Era a essa Europa que Antero e os amigos queriam que o velho Portugal se juntasse.

Na primavera de 1871 decidiram agir, montando uma tertúlia intelectual no Casino Lisbonense, localizado no Largo da Abegoaria, no coração do Chiado.

O programa das conferências foi divulgado a 16 de maio, visando “agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência moderna” e “estudar as condições da transformação política e económica da sociedade portuguesa”. Dali até à terceira semana de junho, Antero falou duas vezes, a segunda das quais para proferir a celebérrima conferência sobre as «Causas da decadência dos povos peninsulares”, um agudo tópico identitário nacional ainda hoje não desvanecido; seguiram-se as intervenções de Augusto Soromenho, de Eça de Queirós, de Salomão Sáragga, de Jaime Batalha Reis e de Augusto Fuschini, sobre a literatura e o realismo, o ensino e os Jesuítas ou a “dedução positiva da ideia democrática”. A novidade e o brilho dos debates atraíram as atenções da imprensa lisboeta e os olhares das elites e dos políticos. Em Paris, entretanto, a Comuna lavrava, furiosa, contra a ordem estabelecida, reificando um novo terror jacobino. Temendo que por cá pudesse acontecer algo de semelhante, o governo, ao tempo presidido pelo marquês de Ávila e Bolama, resolveu “cancelar” os conferencistas, expedindo, a 26 de junho de 1871, uma portaria que mandava encerrar as portas do Casino Lisbonense. Num país onde os intelectuais eram livres e a imprensa escrevia o que queria, o gesto de Ávila teve dois efeitos: tornou instantaneamente famosos, e quase “mártires”, os jovens da Geração de 70 que, de facto, queriam revolucionar o país; e colou-lhe, a Ávila, a imagem de um censor reacionário, mesmo que apoiado pela generalidade das vozes parlamentares, assustadas com o vigor com que a juventude dera em demolir as certezas do Portugal burguês, ordeiro, monárquico e católico do tempo.

A portaria governamental que extinguiu as conferências manchou a reputação de Ávila e marcou-lhe para sempre a biografia. Hoje, interessará menos recordar o ato censório (censurável que ele seja…), do que lembrar a extraordinária energia intelectual e o empenho e compromisso cívicos dos jovens da Geração de 70, que ousaram querer (re)pensar Portugal e pôr os portugueses a olhar para si mesmos, discutindo as razões do atraso nacional e os caminhos de convergência em relação à Europa. Nessa exata dimensão, a sua iniciativa não perdeu razão de ser – aliás, é hoje talvez tão urgente e, pelo que se tem visto, tão polémica como o era em 1871.

Comentários
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  • António J G Costa
    23 jun, 2021 Cacém 22:52
    Em 1871, a Alemanha de Bismarck dava cartas. Anexava a Alsacia e a Lorena à França. No final do séc. XIX, teria nas ciências homens como Max Plank e o célebre Einstein, no início do séc. XX. Os "berros da mudança" tiveram eco finalmente no séc XX com a chegada do socialismo, e variantes como o nacional-socialismo. Guerras devastadoras percorreram então a Terra na 1° metade do séc passado. A corrida aos foguetões, na 2° metade do séc XX, vai levar à chegada do 1° homem à Lua. A válvula electrónica (dedo indicador), vai-se transformar no transistor (botão pequeno) e este vão ser desenhados em circuitos à escala atómica....a monitorização vai lançar a uma revolução sem precedentes do Conhecimento? Será? Homens como Carl Sagan tentaram levar a Magia do Conhecimento às massas..... mas a Ignorância e o "chico - espertismo" imperam e continuam. Em Portugal, pelo menos o presidente não aconselhou os cidadãos a "consumir" lexivia para combater o covid....
  • César Augusto Saraiva
    23 jun, 2021 Maia 10:49
    Enfim, país que não se governa nem se deixa governar!...