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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Os esquecidos da cimeira do Porto

12 mai, 2021 • Opinião de José Miguel Sardica


O governo que foi anfitrião de belas intenções para uma Europa Social é o mesmo que fechou os olhos durante demasiado tempo à neo-escravatura em que vivem milhares de imigrantes extraeuropeus e europeus de Leste que por cá tentam ganhar sustento.

Com a pompa requerida pela circunstância, a cidade do Porto foi anfitriã da Cimeira Social enquadrada na presidência portuguesa da União Europeia. António Costa abriu as portas do imponente edifício da Alfândega do Porto para as sessões e fotografias de conjunto com os líderes europeus, com Charles Michel (o enamorado-de-si-próprio presidente do Conselho Europeu), e com Ursula von der Leyen (a esforçada presidente da Comissão Europeia). A cimeira produziu um documento cheio das grandiloquências do costume, jurando que (a tradução é minha) “é tempo de construir uma ordem que assegure e suporte coletivamente uma agenda ambiciosa para a recuperação e modernização económica e social”, e que seja “forte, sustentável e inclusiva, para que todos os cidadãos beneficiem da dupla transição verde e digital, podendo viver com dignidade”.

Para uma plateia repleta de organizações laborais e do terceiro setor, Von der Leyen quis ser mais concreta e humana, referindo e elogiando o caso de uma jovem enfermeira portuguesa: Vitória Machado partiu para a Alemanha há dois anos, para ali trabalhar num pequeno hospital provincial, com viagem paga pelas autoridades germânicas, que lhe providenciaram um subsídio de integração e lhe ofereceram um curso de língua germânica, entre outras benesses. Vitória gosta da sua profissão e sente-se reconhecida, apoiada e integrada, como se estivesse em sua casa, apesar de ter cruzado fronteiras. A Europa é o continente das oportunidades “fortes, sustentáveis, inclusivas, verdes e digitais” para outras tantas Vitórias, qualquer que seja a nacionalidade do seu passaporte. Será de facto assim?

Na mesma semana em que Costa e o seu staff inclusivo, verde e digital só pensavam na passerelle da Alfândega do Porto, a GNR acordou umas dezenas de paupérrimos imigrantes no Alentejo para, com um aparato digno de uma operação de deportação, os levar, alta madrugada, para o Eco Resort Zmar, onde os proprietários privados dos bungalows não os querem. O Alentejo pertence ao mesmo (pequeno) país que o Porto.

Eis a ironia, aliás, a hipocrisia. O governo que foi anfitrião de belas intenções para uma Europa Social é o mesmo que fechou os olhos durante demasiado tempo à neo-escravatura em que vivem milhares de imigrantes extraeuropeus e europeus de Leste que por cá tentam ganhar sustento, entre redes de tráfico laboral, nos trabalhos agrícolas que o desaparecido campesinato português já não quer fazer.

O caso do Zmar tem sido comentado da maneira que o governo gosta, como um exemplo do egoísmo desumano de alguns portugueses, que rejeitam ter por vizinhos mão-de-obra de que as autoridades estão a cuidar. Não é verdade. O problema está a montante, num Estado que falhou – e continua a falhar – em definir uma política imigratória clara (que faz falta, em vista do irreversível envelhecimento demográfico português e europeu), e em providenciar, com as autarquias, enquadramento legal, económico, social, educativo – em suma, digno –, às famílias que aqui aportam. Quando as imagens dos alojamentos sobrelotados, sujos e indignos, de Odemira ou de outras paragens chegaram às televisões, o governo, pela ação do desajeitado ministro Cabrita reagiu tarde e de forma bruta. Resultado: muitos dos nepaleses, tailandeses, indianos e de outras origens que foram depositados no Zmar, madrugada adentro, perderam o emprego, que agora lhes fica a muitos quilómetros de distância. Parece que a Câmara Municipal de Odemira lhes disponibiliza bicicletas. Deve ser a forma de garantir que esses esquecidos do Porto também estão dentro da agenda inclusiva, sustentável, verde e mais o que seja para ficar bem na fotografia europeia.

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