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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Opinião de José Miguel Sardica

Os donos da meritocracia

21 mar, 2018 • Opinião de José Miguel Sardica


Passos Coelho já não é, politicamente, nada; mas continua a ser a obsessão dos muitos que, na política, se sentem ensombrados ou ameaçados pela sua vitória eleitoral em 2015.

Há um mês, quando Pedro Passos Coelho se retirou da cena política, fiz aqui um pró-memória das circunstâncias e realizações do seu governo. Não era minha intenção voltar a falar dele tão proximamente. Mas não resisto a fazê-lo perante a vozearia mais recente. O pretexto foi o anúncio de que Passos iria refazer a vida regressando à docência universitária. Os zelotes de serviço levantaram logo uma barragem viral de críticas: que o homem não pode ser professor, que não tem nada para ensinar (ou ainda pior, que iria ensinar doutrina “neoliberal”), que é um escândalo a equiparação a catedrático, que houve nepotismo no convite do ISCSP, etc.

Para a esquerda, Passos deveria ir… não se sabe bem para onde! Se fosse para um cargo internacional, era indecoroso, depois dos males infligidos à pátria; se fosse para a vida empresarial, haveria compadrio; se fosse para a consultoria, era para ser lobista, como Paulo Portas; se fosse para um banco, seria para encher os bolsos, como Durão Barroso. Se, por hipótese absurda, ele decidisse montar uma banca de venda de castanhas assadas no Rossio, o PCP logo o denunciaria por concorrência à classe operária, o BE por estar a ofender a “cultura identitária” dos(as) verdadeiros(as) vendedores(as) de castanhas, e o PS mandaria a ASAE fiscalizar-lhe o negócio! E por aí fora…

O problema não é Passos ir para o ISCSP, ser equiparado a catedrático, ou ter ou não currículo. O ISCSP faz muito bem em recrutá-lo. A ser catedrático, será como convidado (como outros ex-políticos, de diferentes partidos, o foram ou são), e não com um ordenado de exclusividade, e não pertencerá nunca à carreira docente. Experiência prática, ao mais alto nível da vida pública e política, não lhe falta, e as universidades também recrutam destes especialistas. Quanto à precariedade contratual que abunda nas universidades, ela é, sem dúvida, assunto importante; mas deve ser tratado noutra sede. A esquerda sabe isto. E aos mais esquecidos convém lembrar que Passos já deu aulas no ensino superior (no ISCE, durante cinco anos), e que, em 1999, não pediu a subvenção vitalícia a que tinha direito por lei, quando encerrou a sua carreira de deputado, não tendo hoje esse rendimento. Da sua biografia só se diz o que convém.

A contratação universitária é apenas um pretexto para continuar a denegri-lo. Passos Coelho já não é, politicamente, nada; mas continua a ser a obsessão dos muitos que, na política, se sentem ensombrados ou ameaçados pela sua vitória eleitoral em 2015. Para além disso, parece que em Portugal a meritocracia só pode estar à esquerda. Há dias, a propósito deste caso, alguém clamava que só a esquerda providenciara figuras com relevância internacional (Soares e Guterres), obliterando que Freitas do Amaral foi Presidente da Assembleia Geral da ONU e Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia. E vale a pena lembrar outro exemplo, conhecido, deste enviesamento moralista – e elitista, com o que há de irónico em o elitismo preconceituoso estar à esquerda. José Saramago, militante do PCP, foi de serralheiro mecânico a Prémio Nobel da Literatura: ascensão notabilíssima (e é verdade). Cavaco Silva, militante e líder do PSD, foi de Boliqueime a Primeiro-Ministro e Presidente da República: ascensão ínvia ou imerecida, que nunca apagou nele o provincianismo e a incultura (o que não é verdade). Pretensa dona da meritocracia, a esquerda é muito seletiva e maniqueísta, e pouco igualitária, afinal, na avaliação alheia. Onde é que já se viu um professor universitário ser liberal e viver em Massamá? Não: para receber a aprovação dos bem-pensantes, Passos Coelho precisaria, no mínimo, de confessar em público um “mea culpa” e talvez mudar-se para uma luxuosa casa na Rua Castilho…

Comentários
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  • cristina nogueira
    28 mar, 2018 Lisboa 16:43
    Muito bem!
  • MASQUEGRACINHA
    22 mar, 2018 TERRADOMEIO 16:04
    E eu, que até tinha uma genuína admiração pelo fair play do Sr. Sardica, vejo-me assim nesta desilusão... Suspiro. Não percebo o que tenha escrito de censurável, uma vez que cumpri, religiosamente, todos os critérios de publicação estabelecidos pela direção de Informação da Renascença. Sendo a primeira vez que acontece com o Sr. Sardica, já me aconteceu com outros opinadores da RR - com idêntica estranheza minha, mas só no que toca aos critérios da Renascença, porque quanto ao fair play, a própria censura diz tudo o que há a dizer, não é? Mas deixo a questão: para quê uma lista de critérios de mediação, tão bem explicadinha, se depois são os primeiros a não cumpri-la? Porque não fazem como outras páginas de informação que deixaram, pura e simplesmente, de ter caixas de comentários? É certo que não tinham mediação... Mas sempre seria mais honesto e leal para com o leitor do que uma mediação batoteira.
  • Duarte Vaz
    21 mar, 2018 Lisboa 09:15
    Só algumas perguntas... Porque faz o ISCSP muito bem em recrutar Pedro Passos Coelho? É porque o José Miguel Sardica gosta dele? Qual foi a biografia que leu de Pedro Passos Coelho? Teria sido a de Felícia Cabrita? Neste livro, ficamos a saber da sua integração na JCP aos 14 anos, dos roubos de caramelos em Luanda e das inúmeras idas nocturnas, com amigos, a jantares, onde o mesmo (a altas horas da manhã) comia da travessa... Uma excelente figura, o seu Pedro Passos Coelho, não haja dúvida. No entanto, existe algo de errado neste seu texto (muito servil). Afinal, a obsessão em Pedro Passos Coelho parece ser mais sua que da esquerda ou da maioria dos portugueses.