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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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Timor: Resistentes e diferentes

28 ago, 2024 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


A forma como Timor está a celebrar os 25 anos do referendo que lhe permitiu escolher o futuro, mostra que os timorenses sabem honrar a sua História. Quer na ligação a Portugal quer na celebração do jornalismo que nunca deixou cair o sonho, daqueles que tombaram sem quebrar.

Uma pequena parcela de terra, metade de uma ilha; população escassa, pouco mais de um milhão de pessoas, numa zona do mundo altamente povoada. Em tais circunstâncias dir-se-ia que depois do abandono português, Timor-Leste seria um caso arrumado.

Mais mês menos mês, a Indonésia incluiria esta metade de uma ilha no seu imenso território. E a cultura da zona esbateria velozmente a herança portuguesa. Uma herança cultural estruturada na portugalidade e, por isso mesmo, ancorada no catolicismo.

A Igreja foi, por assim dizer, cúmplice da recusa timorense em se integrar na Indonésia. Enquadrou parte da resistência, deu a mão à população, protegeu os mais fracos, gente indefesa sujeita a uma luta desigual no poder de fogo, mas absolutamente superior na convicção e determinação.

A alma, de facto, não se mede aos palmos. E após um período conturbado e violento, as rivalidades internas timorenses esbateram-se perante um inimigo externo, mil vezes mais forte.

Em todo o caso, os tempos políticos não ajudavam.

Em 1974/75 o regime indonésio era um aliado ocidental incontornável, no xadrez da guerra fria. E o governo de Jacarta receava a desestabilização que um governo pró-Moscovo em Díli significaria.

Portugal, nessa altura, lavou apressadamente as mãos. As múltiplas incertezas do pós-25 de Abril levaram os novos dirigentes portugueses a acelerarem a saída de Timor, cuja rapidez surpreendeu - seria mais justo dizer, entristeceu - os próprios timorenses, necessariamente impreparados para assumirem de imediato o controle da governação.

Do ponto de vista jornalístico, o percurso de Timor-Leste até à independência é um "case study". O tema não estava na agenda dos grandes grupos de media internacionais já então habituados a impor e a disseminar o seu próprio ecossistema noticioso.

As grandes potências olhavam para Timor, com a irrelevância que na sua sobranceria sempre lhe tinham atribuído. Mesmo aqueles que simpatizavam com a causa de uma pequena nação que pretendia ser um país, consideravam-na diletante e não viam maneira de a levar a bom porto.

As vozes, nem sempre alinhadas dos dirigentes portugueses, mostravam-se insuficientes para inverter o destino indonésio que os timorenses não queriam aceitar.

E as vozes dos ativistas timorenses que percorriam o mundo em busca de apoios, como foi o caso do atual Presidente Ramos-Horta, eram vistas como sonhadoras e condenadas ao esquecimento a que o mundo em breve as votaria.

O desafio era mesmo o de convencer o resto do mundo de que em Timor-Leste havia um caso. E o jornalismo foi essencial, ao dar a conhecer uma história não romântica, mas antes real e brutal, em que muitos perdiam a vida, mas não entregavam a alma.

Contar uma história, mesmo quando muitos não a querem ouvir, é um dos segredos do bom jornalismo - contar e pensar os factos de forma independente, procurando a verdade com a objetividade necessária, sempre para além das convicções pessoais que cada um possa ter.

Pelo contrário, o mau jornalismo mimetiza agendas alheias que o politicamente correto sugere ou impõe. Não elege a procura da verdade como finalidade e contenta-se em repetir vezes sem conta o que outros já fizeram ou contaram, como uma espécie de pensamento único, inconscientemente assumido.

Felizmente, não foi assim com Timor. E embora de modo intermitente, o jornalismo acompanhou com a acutilância possível, os altos e baixos da situação.

Progressivamente, a opinião pública internacional começou a ser sacudida pelos factos. As reportagens sucederam-se, incluindo, entre outras, as da Renascença, protagonizadas mais tarde por profissionais de reconhecido mérito como Anabela Góis e Pedro Mesquita.

O modo como Timor se bateu e honrou - cívica e militarmente - o seu projeto de futuro, no qual ninguém acreditava, foi contagiando a sociedade portuguesa e semeou a dúvida em muitos observadores internacionais: afinal, quem estaria do lado errado da História?

Progressivamente, a repressão indonésia tornou-se evidente para o mundo. O massacre do cemitério de Santa Cruz em que centenas de jovens foram cercados e alvejados pelos militares indonésios, quando simplesmente rezavam, muitos deles de joelhos, era inexplicável e inaceitável. E constituiu ponto de viragem.

Nada justificava que a ida ao cemitério para rezar e protestar pela morte de um jovem morto nos dias anteriores numa Igreja de Díli, levasse ao assassínio em massa de tanta gente.

Nesse dia, por um, morreram muitos, quando as armas começaram a disparar num momento em que os jovens rezavam em voz alta; e rezavam em português.

A ofensiva diplomática portuguesa intensificou-se. Ofensiva que visava sensibilizar sobretudo aqueles que mais prezavam a relação com o regime indonésio, com os Estados Unidos à cabeça.

António Guterres, primeiro-ministro, e Jorge Sampaio, Presidente da República, desempenharam um papel crucial.

E com os primeiros passos da internet nos anos 90, criou-se um movimento global, talvez o primeiro que a internet disseminou, insuflado pelo trabalhos de muitos jornalistas.

Um movimento global a favor de uma pequena nação chamada Timor, que aspirava à independência, apesar de muitos a considerarem uma batalha perdida, impensável e utópica.

A posição do Vaticano foi também muito discutida. Havia quem criticasse João Paulo II por não levantar mais a voz por causa de Timor. Mas sabe-se - e sabia-se já na altura - que a diplomacia vaticana trabalhava discreta, mas ativamente para encontrar uma solução, sem prejudicar as comunidades cristãs que germinavam na Indonésia.

Foi por isso que numa pequena nação, em que havia um só Bispo, o de Díli (D. Ximenes Belo), o Vaticano começou a instaurar novas dioceses e novos bispos, sendo D. Basílio do Nascimento, em Baucau, o primeiro deles, em março de 1997.

Deste modo, o Vaticano preparava a separação da Igreja de Timor face à Igreja católica Indonésia e lançava as bases da criação da Conferência Episcopal timorense, à semelhança do que sucede em todos os países independentes, nos quais a Igreja Católica goza de liberdade de culto.

Este era também um testemunho de reconhecimento por tudo o que a Igreja timorense fizera pelo seu povo. A evangelização cresceu e cresceu a olhos vistos durante a ocupação indonésia.

A fé era refúgio e força.

Os padres conheciam cada família e cada pessoa pelo seu nome, incluindo aqueles que no mato se organizavam militarmente com o (muito) pouco que tinham.

Envolvidos na clandestinidade, esses homens queriam dizer ao mundo que a resistência não era apenas cívica e política, mas também militar.

Eram homens com as mais diferentes profissões, mas agora mobilizados para o suporte militar da resistência.

Em jovens tinham frequentado a catequese e ao abraçarem a resistência militar confiavam-se à Igreja.

Na primeira viagem que fiz a Timor, em 1996, depois de vários anos em que a presença de jornalistas portugueses tinha sido recusada, um sacerdote conduziu-me discretamente a um quarto de sua casa.

Debaixo da cama retirou um baú que uma vez aberto deixava à vista os pertences pessoais de um líder militar timorense que os confiara àquele padre, no momento em que se retirara para a guerra.

Por respeito, em nada tocámos. Bastou ver, porém, que o primeiro dos objetos confiados em boas mãos, era uma bandeira; a bandeira de Portugal.

Esse líder militar timorense tinha um nome que ecoava nos cenários internacionais nos quais se discutia a situação de Timor-leste: Xanana Gusmão. E, já agora, o padre era português de nascimento, mas timorense de coração.

Igreja e Portugal andavam assim de mãos dadas na vida sofrida dos timorenses, mas representavam também a esperança num futuro diferente, no qual os timorenses teimosamente acreditavam, ainda que em nome do bom senso, muitas fossem as vozes que os convidassem a desistir.

Cada visita de um português ao território era uma festa e um sinal para os timorenses: não estavam esquecidos.

Numa tarde de fevereiro de 1996, em Liquiçá, D. Ximenes Belo presidira a uma Missa, à qual tinham assistido milhares de pessoas fora da Igreja - por sinal grande, mas afinal pequena para tão grande multidão.

No final, o jornalista português que assistira e tinha sido apresentado como tal durante a celebração, é rodeado pela multidão. Novos, velhos, homens, mulheres e crianças, muitas de colo, todos se aproximam.

Uns querem ouvir falar português, mas todos, sem exceção, querem beijar-lhe a mão. A perplexidade era enorme e a comoção muito maior. Porém, a recusa seria impossível e até mal interpretada. O beijo na mão era apenas uma forma de agradecer e pedir. Agradecer a presença e pedir o apoio: que nunca Portugal se esquecesse de Timor.

Frequentemente, faltam-nos os ombros para a nossa própria História, disse-me uma vez um padre amigo, a propósito deste episódio. Um episódio que ‘apenas’ demonstra a resiliência dos timorenses, escorada na fé e também na esperança de que os portugueses tivessem ombros para a sua História e para a responsabilidade que dela decorre.

A forma como Timor está a celebrar os 25 anos do referendo que lhe permitiu escolher o futuro, mostra que os timorenses sabem honrar a sua História. Quer na ligação a Portugal quer na celebração do jornalismo que nunca deixou cair o sonho, daqueles que tombaram sem quebrar.

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  • César Saraiva
    29 ago, 2024 Maia 10:16
    Excelente trabalho; Parabéns! Especiais parabéns aos 3 Grandes Jornalistas da Rádio Renascença que foram justa e merecidamente homenageados pelas gratas autoridades Timorenses.