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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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​O laicismo e o Natal

04 jan, 2023 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


Em vez de defenderem o cancelamento da mensagem natalícia de um Patriarca de Lisboa (o atual ou outro), mais compreensível seria que os defensores do laicismo fundamentalista aconselhassem os primeiros-ministros (o atual ou outro) a acabarem com as suas mensagens de Natal. Se não compreendem que um Patriarca de Lisboa possa falar ao país através da RTP, na véspera de Natal, por que razão acolhem favoravelmente a mensagem de um primeiro-ministro, no dia de Natal?

A não transmissão da tradicional mensagem televisiva de Natal do Cardeal-Patriarca de Lisboa tem suscitado dúvidas e questões. Uns aplaudem, outros não. Uns repararam, outros não.

Uns, dentro e fora da Igreja, argumentam que o Patriarca de Lisboa não é o chefe da Igreja Católica portuguesa, pelo que a sua mensagem de Natal, difundida na televisão do Estado, deveria ser evitada, até pelo facto de poder ofender alguma parte da sociedade.

Num tempo politicamente correto, em que alguns para darem um passo pedem licença à própria sombra - não vá alguém incomodar-se - tudo isso faz sentido.

Uma Igreja encerrada na sacristia, sem expressão nem relevância, privatizando a fé e limitando a sua manifestação pública faz as delícias de muitas dessas pessoas. Não é o meu caso.

Claro que o Patriarca de Lisboa não é o chefe da Igreja Católica. Os bispos titulares das dioceses respondem diretamente ao Papa. E as mensagens televisivas dos sucessivos Patriarcas de Lisboa não radicam nessa inexistente chefia.

Sucede que Lisboa é um dos raros Patriarcados no mundo. Há uma distinção – rara, histórica e simbólica – concedida à Igreja de Lisboa e, nessa medida, a toda a Igreja portuguesa. Não vejo vantagem em dissolver aceleradamente Instituições e aquilo que representaram e representam.

Deste modo, a haver uma mensagem de Natal de um bispo português na televisão do Estado, continua a ter sentido, digo-o a título meramente pessoal, que seja o de Lisboa a fazê-lo. Originário do Norte, do Centro, do Sul ou das Ilhas, o bispo da capital portuguesa até pode não ser Cardeal, mas continuará a ser o Patriarca de Lisboa.

Não se trata, neste caso, de elogiar a evidente e reconhecida qualidade pastoral e intelectual do atual Patriarca, mas sim de manter no titular do Patriarcado, qualquer que ele seja, a responsabilidade de se dirigir à sociedade portuguesa na televisão pública, na época do Natal.

Porém, outros aplaudem o final (?) dessa transmissão, em nome da bendita laicidade do Estado.

Para eles, não teria sentido que sendo o Estado laico, o Patriarca de Lisboa pudesse falar do Natal, na televisão estatal.

Já no passado, a Associação República e Laicidade censurara o conteúdo de uma mensagem televisiva natalícia do Patriarca, também pelo facto de D. Manuel Clemente não se ter coibido de tomar partido contra a eutanásia. O Patriarca não foi apenas criticado por falar, mas também pelas opiniões que exprimiu.

A eventual falta de legitimidade de uma mensagem de Natal de um bispo, na televisão pública, radica, assim, em diversos preconceitos.

O primeiro deles é o da desvalorização cultural. Pretende-se que o país não tenha ou não assuma a sua raiz cultural cristã. Dito de outro modo, pretende-se separar a festa do Natal do nascimento de Jesus.

Todavia, as ruas iluminadas, o feriado do 25 de dezembro, as festas natalícias e muitas outras coisas resultam apenas do nascimento de Jesus. O nascimento de Cristo integrou a cultura das nossas sociedades: movimenta milhões de pessoas, levou ao surgimento de inúmeras instituições sociais, condiciona a vida social, altera o ritmo de cada família, mexe com os calendários laborais, ordena os períodos escolares, interfere na agenda política, é uma referência do ano.

Ainda assim, há quem deseje esbater essa identificação. Como se os cristãos (veja-se o paradoxo) estivessem a apropriar-se do nascimento de Cristo. Cheira-me que estamos a assistir ao inverso, havendo quem procure desnatar o Natal e esvaziá-lo da sua natureza.

Sendo crentes ou indiferentes, as pessoas e as nossas comunidades associam-se, pelo menos culturalmente, a esta festa cristã.

E se a festa do Natal é cristã, normal será que os representantes da confissão cristã largamente maioritária entre nós – a Igreja Católica - se exprimam e dela falem, designadamente na televisão pública.

Porém, vencido o preconceito cultural que olha o Natal como se ele não radicasse no nascimento do menino de Belém, talvez seja mais fácil resolver outro preconceito: o da televisão pública.

Sendo pública, a televisão do Estado não poderia estar ao serviço de uma qualquer confissão religiosa. Contudo, ao transmitir uma breve mensagem de Natal do Patriarca de Lisboa, a televisão púbica estará apenas a dar relevância àquilo que é relevante para os portugueses.

Se o Natal é uma festa globalmente assumida pela população portuguesa é mais do que razoável que um dignitário religioso também se dirija à sociedade, por ocasião de uma festa que antes de tudo é religiosa.

Não se trata de favorecer a Igreja Católica, mas antes de reconhecer a natureza do Natal e assinalar a sua fortíssima repercussão social e cultural.

Nada disto significa falta de pluralismo ou desatenção a outras confissões religiosas.

Sucede que em Portugal, o Natal tem uma importância especial, a qual deve ser, por isso, especialmente assinalada. Como acontece, e bem, com outras manifestações de natureza social, cultural, política, económica ou desportiva.

Se a televisão pública não estiver em sintonia com a cultura de um país, servirá, então, para quê?

Mas ainda que vencidos os preconceitos culturais e os relativos ao papel da televisão pública, resta o preconceito laicista. E ele é forte.

Para os defensores do laicismo, a estrita separação (de resto, saudável e necessária para todas as partes) entre Estado e Igreja deveria evitar qualquer suspeita de contaminação religiosa na esfera pública. E defendem deste modo que na televisão do Estado, o Patriarca de Lisboa não deva falar, de modo nenhum, sobre o Natal.

Ora, se há alturas em que é normal o Patriarca de Lisboa falar na televisão pública é precisamente nas quadras religiosas (Natal e Páscoa, por exemplo) que há muito integram e transformaram a cultura da sociedade portuguesa.

O fundamentalismo daqueles que encaram a mensagem de Natal televisiva de um bispo, como um flagrante atentado à laicidade do Estado, vê-se no modo como acolhem as mensagens natalícias... dos primeiros-ministros.

Em vez de defenderem o cancelamento da mensagem natalícia de um Patriarca de Lisboa (o atual ou outro), mais compreensível seria que os defensores do laicismo aconselhassem os primeiros-ministros (o atual ou outro) a acabarem com as suas mensagens de Natal.

Se não compreendem que um Patriarca de Lisboa possa falar ao país através da RTP, na véspera de Natal, por que razão acolhem favoravelmente a mensagem de um primeiro-ministro, no dia de Natal?

Levada ao extremo, a separação entre Estado e Igreja converteu-se num laicismo militante que em vez de separar concentra: como se as mensagens de Natal, na televisão pública, devesse ser assunto vedado à Igreja e reservado a políticos.

Dito isto, compreendo que os primeiros-ministros aproveitem a época do Natal para falar ao país, precisamente pela importância da quadra natalícia para toda a sociedade portuguesa. E espero que o continuem a fazer, do mesmo modo que desejo voltar a ouvir, no Natal de 2023, na televisão que a todos nós pertence, o Patriarca de Lisboa.

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