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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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A verdade nunca prescreve

15 out, 2022 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


A pedofilia é um crime; e um crime hediondo. Nenhuma criança devia ser exposta a semelhante provação. E nenhum criminoso devia poder escapar às suas responsabilidades.

Não é na Igreja que este tipo de situações mais vezes ocorre. Mas na Igreja, um caso que fosse já seria demais.

Até hoje terão sido apurados 424 casos. E se mais fossem, maior seria a tragédia.

A confirmarem-se os casos anunciados, cada uma daquelas 424 pessoas foi sujeita, na sua infância ou adolescência, a comportamentos e práticas inqualificáveis e criminosas.

Pecadora, como se confessa, a Igreja já pediu desculpas às vítimas inocentes. Desculpas, reiteradamente apresentadas por alguns bispos e pela Conferência Episcopal Portuguesa.

Sabendo-se que os danos pessoais causados são em si mesmos irreparáveis, a ‘tolerância zero’, já assumida pelo Papa e pela Igreja portuguesa, passa obrigatoriamente também pelo afastamento e responsabilização dos envolvidos e pela adoção de medidas que previnam os abusos.

Não duvido ser essa a intenção da Igreja, mas é preciso concretizá-la de forma inequívoca; como é indispensável dialogar sobre este tema com a sociedade portuguesa, com uma linguagem transparente, rigorosa e credível. Sem criar confusão onde já existe incerteza e assumindo a verdade, porque só ela basta.

Foi, aliás, por iniciativa da Igreja portuguesa que se constituiu uma comissão independente para apurar o que se passou a este nível, nos últimos 50 anos.

Pode gostar-se mais ou gostar-se menos da decisão de constituir uma comissão como esta.

Pode apreciar-se mais ou apreciar-se menos a composição desta comissão. Mas o facto é que a comissão independente constituída para investigar os abusos sexuais na Igreja e que agora detetou estas mais de quatro centenas de situações, não nasceu por nenhuma imposição, mas sim por decisão da própria Igreja católica.

Sucede que, sem prejuízo do que a comissão já fez, agora é o momento de a Justiça trabalhar, nos termos em que habitualmente o faz.

Como em quaisquer outros casos, cabe às autoridades policiais e judiciais aprofundar as investigações, com celeridade e total independência, distinguindo, se for o caso, entre justas denúncias e (eventuais) meras calúnias.

A lei, a investigação criminal e respetivas consequências e garantias (como a do princípio da presunção da inocência até trânsito em julgado de uma futura sentença) devem aplicar-se a todos os cidadãos, sem exceção ou favor de nenhuma ordem – nestes como em quaisquer outros casos.

De resto, como em muitos outros processos mediáticos, as situações que a comissão investigou estão a ser administradas e divulgadas cirurgicamente e a conta-gotas, na praça pública. E ao contrário do que sucede em casos de corrupção que têm atingido diferentes famílias políticas portuguesas, ainda ninguém se inquietou, desta vez, com a violação do segredo de justiça.

Em todo o caso, o bem maior a proteger são as pessoas. Nunca será possível garantir que nalguma circunstância não surjam pessoas claramente doentes e perturbadas. Mas à Igreja, bem como a outras instituições e à sociedade em geral, cabe agir para prevenir, reparar e curar.

Não creio, contudo, que o Presidente da República tenha querido passar uma esponja pelo sofrimento das vítimas, ao comentar o número de casos apurados. Basta conhecê-lo minimamente, para saber que Marcelo Rebelo de Sousa nunca desvalorizaria o sofrimento concreto destas pessoas. Limitou-se a ser igual a si próprio: pronunciou-se ao jeito de comentador que enquanto Presidente da República nunca deixou de ser.

Como Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa comenta tudo e tudo aproveita para aparecer e falar. Tanto aprofunda e analisa as tácticas de Fernando Santos à saída de um estádio de futebol, como discorre, à porta de hospitais e ao jeito de boletim clínico, sobre a situação médica de alguém, vítima de um desastre com relevância mediática.

Marcelo comentador nunca perdoaria a um Presidente falador que se perdesse e desbaratasse em comentários impensáveis, na praça pública.

Todavia, até agora, poucos se importavam com a ânsia e a abundância da palavra do Presidente, as quais são uma constante desde o início dos seus mandatos.

O problema é que aquilo que disse desta vez, foi interpretado como defesa da Igreja. E aí parece residir, para muitos comentadores ou dirigentes políticos, o verdadeiro problema.

Se em circunstâncias semelhantes, o Presidente aparentasse defender outra qualquer comunidade, daquelas que, por exemplo, caem no goto da esquerda caviar, duvido que houvesse celeuma alguma.

Mas a suspeita de que poderia estar a defender a Igreja, por assumir esperar maior número de casos, como infelizmente sucedeu noutros países, encolerizou a multidão de comentadores e muitos dirigentes políticos.

De resto, ao dizer que esperava mais casos, Marcelo está a defender a Igreja ou a manifestar a suspeita que haja mais situações de pedofilia, do que até ao momento foi possível investigar?

Como sempre, haverá quem pretenda confundir a árvore com a floresta, ignorando que para a Igreja, uma só árvore doente deva ser causa de escândalo.

Muitos crimes já terão prescrito, mas os danos causados às vítimas, esses, infelizmente, não prescrevem. E a verdade, muito menos.

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  • José Bulcão
    15 out, 2022 Almada 18:05
    Apresentar a Igreja Católica Portuguesa como um todo com uma única resposta de condenação dos abusos e com uma atitude de expiação das suas faltas não é muito real. De facto, como todos se deram conta nos últimos dias e até com algum espanto pelo meio, há membros da Igreja com posições antagónicas: de facto há quem tenha uma posição e modo de sentir que corresponde a essa perspectiva mas também há membros dessa mesma Igreja que frontalmente se negam a assumir as responsabilidades com as vítimas, quase que dir-se-ia que consideram que os membros do Clero não devem abdicar do privilégio da inimputabilidade (?) e defendem a sua posição com sofismas (um deles, de tão básico que era, foi logo desmentido). Ninguém pretende que a Igreja Católica Portuguesa Portuguesa se auto flagele mas tão somente que assuma uma atitude consentânea com a sua Missão.