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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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​A arte de destruir com grande competência

07 jul, 2022 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


O país é pequeno e tem grandes potencialidades. A atual conjuntura internacional pode até reforçar o papel de Portugal. Mas se os sistemas básicos se degradarem, as fatalidades serão mais fortes do que as oportunidades.

O Serviço Nacional de Saúde nasceu com o PS. E era uma espécie de jóia da coroa, com a qual os socialistas ornamentavam o seu discurso político. O país agradecia. A saúde é um bem escasso e normalmente caro, para todos em geral e para os mais pobres, em especial.

Tendo nascido com o Partido Socialista, o SNS arrisca-se, porém, a morrer às mãos do PS. A falta de visão e o excesso de ideologia estão a destruir - com grande competência - o Serviço Nacional de Saúde.

A pandemia tem costas largas, mas não é justo responsabilizá-la pelos erros humanos. Já no Verão de 2019, ainda antes do ciclo pandémico, se falava no encerramento sazonal das urgências de obstetrícia, na região da Grande Lisboa, por falta de médicos.

O caos agora instalado não se circunscreve à obstetrícia. E já seria mau, se assim fosse. O Serviço Nacional de Saúde está a rebentar por quase todas as costuras.

Haverá problemas de serviços, instalações e nalguns casos de equipamentos. Mas, sobretudo, há profissionais desgastados e desmotivados, médicos e não só. Sentem-se tão reconhecidos pelos doentes, quanto desvalorizados pelo Estado.

Se não fossem resilientes, muitos deles já não estariam no SNS. Mas a resiliência tem o limite da dignidade. E a ultrapassagem dessa fronteira leva muitos e muitos profissionais da Saúde, formados e especializados ao longo de tantos anos, a optarem pela emigração ou pela medicina privada.

Conheço muitos médicos e enfermeiros que diariamente enfrentam toda a sorte de empecilhos no SNS, para conseguirem exercer a sua função e missão – salvar vidas, curar pessoas, atenuar dramas.

Contudo, sendo tal serviço nobre e essencial, a ministra da Saúde parece partir do princípio de que estes profissionais são mal-agradecidos e deviam resignar-se à sua sorte, aceitando, reverentemente e de olhos fechados, aquilo que o Estado lhes dá ou, neste caso, não dá.

Acontece que há outro mundo lá fora. E este lá fora significa fora do SNS e (infelizmente) fora de Portugal. Neste quadro, muita da experiência e da formação aqui recebidas, acabam por beneficiar outros países que gerem o sistema de Saúde, com os olhos postos no melhor dos interesses dos utentes e dos contribuintes.

O ministro das Finanças diz que dinheiro não falta. Se assim for, fica ‘apenas’ a faltar capacidade de gestão (os profissionais de saúde bem sabem que há outras formas de gerir serviços, de organizar valências e de atrair profissionais de qualidade) e uma visão lúcida - e não ideológica - para o SNS.

Para ganhar o poder com a ‘Geringonça’, o PS cedeu à lógica estatizante do Bloco de Esquerda e do PCP. De resto, a atual ministra da Saúde esteve sempre alinhada com essa (falta de) visão. Mesmo durante a pandemia.

Por pressão do Bloco, a ‘geringonça’ foi eliminando parcerias público-privadas.

Aplacada a azia ideológica contra ‘os privados’, o Estado pode agora celebrar o resultado da sua obra: passou a gastar mais e a servir pior.

Todos, sobretudo os utentes dessas zonas (veja-se o caso de Loures) passaram a ser pior servidos. Mas o grande objetivo não era servi-los melhor. Importava, isso sim, derrotar os privados, devolvendo ao Estado aquilo que se lhe havia escapado das mãos.

Nesses hospitais, nalgumas especialidades, o número de médicos desceu abaixo dos níveis mínimos para garantir o pleno funcionamento dos serviços.

Já para não falar do interior do país, cujas populações são obrigadas a fazer dezenas ou centenas de quilómetros, à procura da Saúde que não encontram a uma distância razoável de suas casas.

A tendência vai agravar-se. Cabe ao Estado olhar para o problema da Saúde no interior de um modo integrado, combinando valências públicas, privadas e sociais e simultaneamente oferecendo aos profissionais, condições claramente atrativas para a sua fixação.

A Saúde é uma das áreas em que é indispensável uma contratualização com todo o sistema de saúde que não se esgota no SNS. Mas é também necessário suscitar uma contratualização política, para que cada nova maioria parlamentar não se entretenha a destruir aquilo que os seus antecessores fizeram.

Se não houver um grande consenso político nem uma contratualização com os diferentes pilares, o sistema de saúde português, tal como o conhecemos, não tem futuro.

Primeiro com a ‘Geringonça’ e agora com maioria absoluta, o PS governa o país há sete anos, pelo que alguma responsabilidade terá no estado a que o país chegou.

Pode ser que agora, com a liderança do PSD entregue a Luís Montenegro, Pedro Passos Coelho volte a ser responsabilizado por tudo aquilo que corre mal em Portugal. Mas chegámos a uma conjuntura – guerra, inflação, pandemia, pobreza e a certeza de que o futuro é incerto - em que não há margem para os discursos do costume e os truques habituais da ‘pequena política’.

O país é pequeno e tem grandes potencialidades. A atual conjuntura internacional pode até reforçar o papel de Portugal. Mas se os sistemas básicos se degradarem, as fatalidades serão mais fortes do que as oportunidades.

Há áreas cruciais para as populações (as que residem e as que nos visitam) que devem ser profundamente repensadas, a partir de diferentes contributos.

Se o Governo, por si, não o quer fazer, cabe ao Presidente da República recuperar a utilidade do seu papel político e dar um banho de realidade a quem vive entaipado nos salões do poder.

E não é só a Saúde que precisa de um esforço alargado de compromisso. A educação é outro pilar em crise.

De modo mais ou menos silencioso, as escolas privadas foram contidas e muitas fecharam portas, nos últimos anos.

Algumas dessas escolas eram reconhecidas pela sua qualidade e pelo seu projeto de ensino. Tal não bastou para que o Estado mantivesse acordos com essas Escolas ou, em alternativa, subsidiasse diretamente as Famílias que as escolhessem.

Nada disso, estando as populações bem servidas, decidiu ainda assim o Estado abrir novas escolas públicas e estender a sua oferta a essas populações, mesmo quando se prevê, num futuro próximo, uma escassez galopante do número de professores.

Numa confissão ou num deslize, o anterior ministro da Educação de António Costa acabou mesmo por admitir que nas escolas estatais o valor pago pelo Estado por cada aluno saía bem mais caro do que nas escolas privadas.

Mas isso que importa? O dinheiro do Estado presume-se inesgotável e é gerido por quem sabe que não estará demasiado tempo nos lugares para ser responsabilizado.

O que mais importa a muitos destes atores políticos é semearem a sua bandeira ideológica no mapa, neste caso endeusando a escola pública e arrasando a privada.

E de caminho (sempre a ideologia) procurando impor a tudo e a todos uma visão única da vida e do mundo. É disso que trata a famosa disciplina Cidadania e Desenvolvimento, cujos conteúdos, pelo menos parte deles, nunca deveriam ser obrigatórios: em nome da liberdade de educação e em nome da própria diversidade, que tanto dizem defender.

O que se tem passado nos últimos anos, com a perseguição aos pais que recusaram aceitar a obrigatoriedade de alguns dos conteúdos da referida disciplina, envergonha Portugal.

E devia envergonhar particularmente o Ministério da Educação, a escola de Famalicão e recentemente o Ministério Público que se propunha retirar a guarda das crianças aos pais, trocando-os pela escola durante o período de lecionação.

Valeu o bom senso do juiz que suspendeu o processo por mais uns meses, num caso em que as crianças, sendo alunos de excelência, já passaram por toda a sorte de ameaças, desde o ‘chumbo’ (agora disfarçado com o diáfano termo da ‘retenção’) até à retirada da guarda dos pais, confiando-os à escola (certamente, por ser pública, logo, de confiança) durante o tempo em que ali permanecessem.

Dito de outro modo, pretendia o Ministério Público que uma vez confiadas à escola, as crianças, contra sua vontade, fossem obrigadas a frequentar as aulas de uma disciplina que visa disciplinar a visão do mundo, com base numa cartilha em que os pais (esses empecilhos) nunca foram tidos nem achados.

Em 2022 e num país democrático, onde fica a liberdade, quando o Estado, pela mão do Ministério Público, se arroga o direito de punir ideologicamente as Famílias?

Nesta lógica estatizante há uma regra básica: o Estado é sempre melhor e os privados, um perigo. Nos antípodas, encontramos outra: os privados são sempre excelentes e o Estado, um bando de incapazes.

Enquanto vivermos nestas duas lógicas sectárias e ideológicas, seja na Saúde seja na Educação, é difícil aproveitar aquilo que o país tem de melhor, na esfera privada e também na órbita do Estado.

Já na área da Justiça, as questões, sendo outras, não são menos graves.

Para o comum dos cidadãos, muito do que se passa na Justiça portuguesa é demasiado nebuloso. Acontece que a Justiça é um setor chave, para a credibilidade interna e para a atração externa do país.

Os cidadãos precisam de acreditar que ninguém está acima da lei e que as instituições judiciais garantem isso mesmo. E os investidores externos precisam de acreditar que, em caso de conflito, a Justiça portuguesa assegura processos justos e céleres, sem fragilizar decisões, compromissos e investimentos.

Sucede que o arrastamento dos megaprocessos (seja o de José Sócrates ou o do antigo BES) é incompreensível à luz da Justiça.

Noutros sistemas judiciais, casos não menos complexos são investigados, julgados e decididos em prazos muito inferiores aos nossos. Seis, oito ou dez anos é simplesmente demais.

A Justiça quer-se sólida, mas rápida. Discutível nos argumentos usados pelas partes (como é normal), mas indiscutível no rigor e na ética.

Porém, diariamente somos confrontados com situações limite, desde alguns processos judiciais, até aos meios para prevenir a segurança dos menores, em famílias consideradas de risco.

Nos últimos dias foi noticiado que o incidente levantado por José Sócrates (determinar se houve ou não irregularidade na distribuição de um recurso do ex-primeiro-ministro no Tribunal da Relação) vai ser decidido por um juiz conselheiro (Lopes da Mota) que em 2009 foi condenado a 30 dias de suspensão (era na altura Procurador) por ter alegadamente pressionado dois colegas seus, no sentido de arquivarem o processo Freeport que envolvia Sócrates, seu ex-colega de Governo.

Antes deste recurso ser entregue a Lopes da Mota, outro juiz do Supremo a quem o processo fora distribuído, declarou-se impedido, alegando já ter tido uma intervenção anterior na Operação Marquês.

Esse não é o caso de Lopes da Mota. Mas tendo sido condenado a 30 dias de suspensão pelo Conselho Superior do Ministério Público, por alegadamente ter pressionado colegas para que arquivassem um processo que envolvia José Sócrates, não deveria também este juiz conselheiro declarar-se impedido?

Não é uma questão de Lei? Talvez não seja. Mas a ética existe antes da lei e às vezes, apesar dela.

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