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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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Os debates e como a esquerda é conservadora (embora não goste que se saiba)

13 jan, 2022 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


Presas ao passado, algumas esquerdas parecem ter horror a mudar. Conservam receitas ineficazes, desde que mantenham uma certa aparência de esquerda. Ineficazes? Talvez, mas com ‘sotaque’ de esquerda.

Numa pré-campanha eleitoral condicionada pela pandemia - com menos rua e mais ecrãs - destaco três pontos.

Os debates televisivos dos protagonistas e os debates dos comentadores que invariavelmente se seguem.

As discussões sobre o que é ser de esquerda e de direita.

E a dicotomia liberais vs. conservadores - estejam eles em que partido estiverem.

1. Sobre os debates

Como sempre, há prós e contras no formato escolhido.

Debates ‘concentrados’ (com cerca de 25 minutos) mobilizam mais gente do que emissões longas e intermináveis.

Por outro lado, o ‘frente-a-frente’ permite confrontar os vários dirigentes em diversos contextos.

Finalmente, estes debates obrigam a uma comunicação diferente e nem todos estão preparados para ela - dirigentes políticos e jornalistas.

O estilo provocador de André Ventura encaixa bem neste sistema de debates. Apresenta-se com um discurso ‘de feira’: uma torrente de argumentos, que o tempo não deixa justificar ou contraditar. Entre os documentos que mostra e as frases que dispara, vê-se que está como peixe na água.

Já Rui Rio demora mais tempo a explicar-se e quando pressionado saem-lhe disparates como o da prisão perpétua ou o facto de se afirmar católico, para clarificar, logo de seguida, não ser crente e não ter fé.

Jerónimo de Sousa não foi feito para formatos como este. E até António Costa, experiente como é, não foi capaz de escapar ao cerco do líder do CDS quanto ao incumprimento da promessa socialista sobre a atribuição dos médicos de família.

Francisco Rodrigues dos Santos tem vindo a melhorar. Depois de debates iniciais em que surgiu frenético, marcou pontos nos confrontos com Rio e Costa. E soube aí explicar a visão e as diferenças do CDS.

Cotrim de Figueiredo, embora geralmente nervoso, vai afirmando as alternativas da Iniciativa Liberal, mas o ritmo acelerado dos debates rouba-lhe clarividência. Com Rio esteve melhor. A cadência mais pousada e tranquila favorece os líderes da IL e do PSD.

Rui Tavares tem feito pela vida - com uma postura serena e com propostas diferenciadoras, tenta justificar a escolha daqueles que à esquerda estão a ser namorados para o voto ‘útil’ no PS. Tavares tem sido até mais convincente do que Catarina Martins, telegénica, mas demasiado ‘ensaiada’ no discurso. De tão repetida, a pose da líder do Bloco já não passa com a mesma facilidade e não chega para explicar as suas responsabilidades na atual crise política.

Combativa, mas discreta, Inês Sousa Real denota fragilidades e não parece ter condições para garantir o anterior resultado do PAN.

No momento em que escrevo faltam ainda alguns debates significativos. Destaco aquele que vai opor (nas televisões e com transmissão na Renascença) António Costa e Rui Rio; e no dia 20 de Janeiro, o debate nas rádios, entre todos os líderes.

Nessa altura, poder-se-à fazer um balanço mais completo sobre o modo como cada líder aproveitou este ciclo de debates.

Mas aos debates entre dirigentes têm-se sucedido os debates entre comentadores. Uns melhores outros piores. Não é fácil avaliar a quente um debate. Porém, nalguns casos fica-se com a sensação de se ter visto outro debate, diferente daquele que está a ser comentado.

Cada comentador tem as suas ideias, o que é legítimo e necessário. Mas a avaliação de um debate implica liberdade crítica. Por vezes nem sempre vence, o candidato da nossa preferência. Saber reconhecê-lo é uma questão de independência.

2. Sobre o que significa ser de esquerda ou de direita

Como se tem visto nestas semanas de pré-campanha eleitoral, colar rótulos é fácil. Com rótulos fáceis carimbam-se pessoas ou entidades, pelas melhores ou pelas piores razões. Mas, frequentemente, os rótulos são apenas uma forma de camuflar a realidade.

Quem se situa habitualmente nos extremos do panorama político, orgulha-se e reivindica esse lugar?

André Ventura dirá que é de extrema-direita? E Catarina Martins, Rui Tavares ou Jerónimo de Sousa assumirão ser de extrema-esquerda?

Para além de os confrontar com as respetivas propostas, seria bom ouvir de cada um deles, e de viva voz, se defendem ou se afastam dos regimes totalitários de má memória - de extrema-direita e de extrema esquerda - que o mundo e a Europa tão bem conhecem ou conheceram.

Mas a vida e as pessoas são plurais. Muitas delas não são enquadráveis nos modelos de análise mais simplistas.

O que significa hoje ser de esquerda ou de direita?

Quem defenda a liberdade de escolha na saúde e na educação e se oponha ao aborto e à eutanásia é fácil e literalmente arrumado à direita.

Quem se preocupe com a justiça social, sofra com a pobreza, promova uma economia ética que respeita o valor do trabalho e se indigne pelo modo como são tratados os imigrantes é rapidamente alinhado à esquerda.

O problema dos modelos simplistas é quando as pessoas acima classificadas como de direita e de esquerda são afinal, exactamente as mesmas.

Por defenderem a vida no início e no seu fim ou por afirmarem o direito das famílias em escolher o projeto educativo para os seus filhos, não podem estes mesmos eleitores preocuparem-se também com as desigualdades e com a dignidade das pessoas no trabalho, na imigração e na aspiração à equidade social?

Quem defende a vida, não o pode fazer de modo integral? Desde o início até ao seu termo natural, passando pelas condições de dignidade na vida social, no trabalho, nas relações humanas e na ética pessoal?

Aliás, quem defenda a vida humana não deve obrigar-se a fazê-lo em todos os contextos, designadamente económicos e sociais?

Não se pode assumir uma ecologia integral da vida humana, como sustenta o Papa Francisco, cujo pensamento Catarina Martins tentou instrumentalizar para um fim específico?

Aí, os modelos baralham-se e as cartilhas simplistas não funcionam.

Aí, os mais radicais - à direita e à esquerda - tropeçam e ficam sem chão.

Escapa-se-lhes como é simultaneamente possível defender a conservação do que vale a pena conservar e ser arrojado naquilo que é indispensável mudar.

Não entendem que os defensores da vida no caso do aborto e da eutanásia, se oponham à pobreza e procurem ajudar os que mais sofrem na sociedade. Não apenas com palavras, mas no concreto, com gestos, sinais e obras.

Vendo e ouvindo alguns que promovem ativamente o arco-íris, conclui-se que afinal, na vida, só conhecem duas cores - o preto e o branco.

3. Sobre a dicotomia conservadores vs. liberais

Aí falham também os que pretendem reduzir e simplificar as escolhas eleitorais a uma opção entre conservadores e liberais.

Como se a vida pudesse ser reduzida a um dilema entre conservadores fundamentalistas e liberais furiosos (e fundamentalistas, também por isso).

E como se não fosse concebível que cada eleitor pudesse ser mais liberal numas matérias e noutras mais conservador.

Desconfio muito dos que pretendem conservar tudo e não desconfio menos daqueles que tudo querem liberalizar.

E quando - não do ponto de vista histórico, mas na atualidade - combinamos a análise das duas matrizes - esquerda / direita e conservadores / liberais - chegamos a conclusões interessantes.

Nalgumas matérias, a chamada esquerda é bem mais conservadora do que aqueles geralmente classificados como direita. E há na dita esquerda gente muito mais liberal do que frequentemente se encontra na referida direita.

O sistema fiscal, como via para a justiça social, é um bom exemplo.

A esquerda vive obcecada pela carga fiscal que impõe à sociedade e cujo modelo, mais coisa menos coisa, pretende conservar, como receita inevitável.

No debate com Rui Rio, Cotrim de Figueiredo conseguiu explicar como o alívio dos impostos sobre as pessoas e sobre as empresas pode revitalizar a economia e produzir mais riqueza e melhores salários.

Independentemente das soluções técnicas concretas, parece cada vez mais evidente que a preservação do atual sistema fiscal é fonte de mais injustiça e de mais pobreza. Quem o pretende conservar? E quem pretende mudá-lo e inovar?

Presas ao passado, algumas esquerdas parecem ter horror a mudar. Preferem conservar receitas ineficazes, desde que mantenham uma certa aparência de esquerda. Ineficazes? Talvez, mas com ‘sotaque’ de esquerda.

Já no domínio das chamadas questões fracturantes, o Bloco de Esquerda ou o Livre parecem ser tão liberais quanto a própria Iniciativa Liberal. Afinal, nalguns casos, a esquerda ultrapassa em liberalismo aquela direita que mais liberal se confessa?

Tal significa que as fronteiras ideológicas são mais fluídas e as escolhas eleitorais menos óbvias.

Nas opções de voto, a personalidade dos dirigentes e as figuras que os acompanham são importantes, mas as ideias e os conceitos também.

Não bastam os clichés do costume nem os ‘chavões’ habituais. É preciso ver mais longe do que as meras aparências. E no fim, escolher e votar. Sem deixar que nos ‘vendam’ nada que não queiramos ‘comprar’, mas votar.

Porque não há votos perfeitos. Mas todos são necessários.

P.S. - No debate com o líder do CDS, António Costa defendeu a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, na qual se doutrinam os nossos jovens com a ideologia do género, argumentando que ali se ensinam os valores constitucionais.

Sucede que em 1976, os deputados constituintes, à cautela, tiveram a sabedoria de incluir, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias da Constituição, o artigo 43 (Liberdade de aprender e ensinar), em cujo número 2 se proíbe expressamente o Estado de “programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Tal significa que a disciplina Cidadania e Desenvolvimento - tal como é concebida e ministrada - não pode deixar de ser considerada inconstitucional.

Mas face ao que disse António Costa resta-me concluir uma de duas coisas: ou eu não sei ler ou o primeiro-ministro tem uma Constituição diferente da minha.

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