19 out, 2023 • Rui Miguel Tovar
Bem-vindos ao Jogo de Palavra. Hoje temos o inimitável Carlos Manuel em estúdio. Inimitável porquê? Ponto número um, está connosco no estúdio. Ponto número dois, está aqui para contar a história dele. E, ponto número três, e que história. Não é comum um médio marcar o golo do título de campeão nacional (Portimonense 0:1 Benfica em 1983), marcar o golo da final da Taça de Portugal (FC Porto 0:1 Benfica, também em 1983) e marcar o golo de qualificação para um Mundial, o 1986 (RFA 0:1 Portugal). Visto assim, só estes três golos, o que dizer?
Ahahahah, boa tarde ou boa noite, consoante a hora. E faltam um: Wroclaw.
Ah sim, na Polónia, com tabelinha do Gomes.
Se não ganhássemos na Polónia, já não íamos para o jogo com a URSS com hipótese de sonhar com o Euro-84. Feitas as contas, acho que tive sorte, muita sorte.
Nunca vi o golo em Portimão, que tal?
Foi muito bom, fora da área, sem a bola cair. É uma bola do lado esquerdo, já não me lembro de quem, um jogador do Portimonense dá de cabeça para fora da área e eu remato.
Então são três golos fora da área.
Verdade, normalmente era assim. Não era assim um marcador dentro de área. Marquei um ou outro, mas.
Lembro-me de um de cabeça ao Estrela Vermelha, com Ivkovic na baliza.
Esse até foi em voo. Marquei dois nessa noite europeia e o outro foi, lá está, fora da área. Um chapéu, e com o pé esquerdo. O pé do eléctrico. Eu sou do tempo em que se andava de eléctrico, ahahah. Agora a sério, tudo tem um contexto e calhou-me a mim esses momentos tão bons numa altura em que estava em equipas tão boas. E quero dizer isso porque o colectivo tem muita importância. Agora os golos, há os bonitos e os feios. Seja como for, são golos. Aquele em Estugarda foi o mais mediático porque Portugal inteiro estava a ver, porque Portugal não ia ao Mundial há já 20 anos, desde 1966...
E só voltou a ir em 2002.
E só voltou a ir em 2002, isso mesmo. Esse golo em Estugarda é de todo o Portugal, é o golo de um país. E os apuramentos naquele tempo era muito difícil.
O nosso tinha RFA mais Suécia e Checoslováquia, selecções muito mais forte fisicamente.
Muito mais, sem comparação. Mas nós tínhamos jogadores muito bons, tanto do Benfica como do FC Porto como do Sporting. Só avançados, por exemplos, tínhamos Gomes, Manuel Fernandes, Jordão, Nené. Já vistes estes quatro? Fora outros. Esse golo em Estugarda é fantástico, mas não foi o mais bonito.
Qual foi, então?
Na Póvoa, para a Taça de Portugal. Só três jogadores tocaram na bola, Bento, Toni e eu. E marquei de trivela, perto da bandeirola de canto. Estou farto de procurar e não encontro. Nem a RTP. Ainda sobre o golo em Estugarda, tenho uma história gira com um amigo meu lá na Moita. Esse meu amigo não percebe nada de futebol, é só tauromaquia, tauromaquia, tauromaquia. Almoçávamos juntos às vezes e, depois do golo, apareceu uma pessoa a meio da refeição a falar do golo em Estugarda. Mais à frente, uns meses depois, ia almoçar com ele outra vez e outra pessoa falava do golo. E a cena repetiu-se. Às tantas, esse meu amigo vira-se para mim e pergunta-me ‘ó Manel, tu só marcaste um golo?’ Ahahahahah.
Ahahahahah.
Lá lhe disse que tinha marcado mais uns quantos.
Esse onze da selecção em Estugarda junta cinco clubes entre Benfica, FC Porto e Sporting mais Belenenses, com o José António, e o Boavista, com o Frederico.
Verdade, verdade. E ainda entrou o José Rafael, do Boavista. No jogo anterior, vimo-nos aflitos para ganhar a Malta na Luz. E fomos assobiados. Ganhámos 3:2.
E o José Rafael marcou.
Pois foi, o 2:2 acho. O 3:2 foi do Gomes.
Se empatássemos com Malta, já nem interessava para nada o resultado em Estugarda.
E se a Checoslováquia não ganhasse à Suécia, também não.
Pois ééééé.
Esse jogo foi à tarde, fomos informados do resultado final de 2:1 à chegada ao estádio, ainda no autocarro. Alguém ao pé de nós e disse-nos que tínhamos de ganhar para ir ao México. E nós a pensar [Carlos Manuel faz uma careta], a RFA nunca tinha perdido em casa na qualificação para o Mundial.
E aconteceu.
Aconteceu. E houve mais coisas bonitas nesse jogo, também importantes. Por exemplo, quando acabou o jogo, festejámos e fomos para o hotel. Jantámos lá e passei a noite sentado no bar do hotel com emigrantes portugueses. Como ainda não havia charters, passávamos a noite no hotel. Fiquei sentado a conviver com os emigrantes e senti que aquela gente, fora de Portugal há anos e anos, podiam finalmente chegar ao emprego naquela manhã e espezinhar os alemães. Isso é uma satisfação do caraças.
Se o Mundial fosse na semana seguinte, cuidado.
[Carlos Manuel faz outra careta]. Continuo a pensar que o Mundial do México foi muito positivo para o nosso futebol. Nós estávamos numa bolha bem grande com muita gente dentro da federação a pensar como se estivéssemos antes do 25 de Abril. Era o quero, posso e mando.
Diz respeito a tudo?
Tudo, tudo, tudo. Organização, pagamentos, tudo, tudo, tudo. O estágio foi de 35 dias. Prometeram-nos três jogos lá no México, só fizemos um. Ganhámos por 14, acho. Era com a selecção do Chile, diziam eles [da federação]. Chegámos lá a Monterrey e era uma selecção de cozinheiros barrigudos, com os calções por baixo do joelho.
Cozinheiros chilenos, está visto.
Ahahah. Ganhámos por 14. A malta vivia numa bolha e o presidente da federação daquela altura [Silva Resende] só apareceu no último jogo.
Com Marrocos?
Sim.
Antes ou depois?
Depois, entrou no balneário e disse-lhe directamente que não jogava mais na selecção enquanto ele não saísse. Porque o problema do México já vem de trás, do Euro-84. Os dinheiros, os patrocínios, as viagens, as condições.
Muito amadorismo.
Mesmo, muito amadorismo. E começámos a ter voz, nós jogadores, lá no México. E a diferença do Europeu para o Mundial é o diálogo. Nós, jogadores, não nos falávamos durante o Europeu. Só nos treinos. E nos jogos, claro. No Mundial, falámo-nos todos. No Europeu, havia a mesa do Benfica e a mesa do FC Porto.
E o Damas mais o Jordão?
Por acaso, sentavam-se na nossa mesa. Dois anos depois, tudo muda. Quisemos falar, quisemos mudar o futebol português. Só que o presidente não estava e quem falava connosco era o número dois, Amândio de Carvalho. Não tinha força, não decidia. No Europeu, há uma história de muitas.
Conta.
Saiu um livro da federação sobre os jogadores portugueses no Europeu. Um livro bonito, com fotografia e a carreira toda. Mandaram um camião para Paris e é bom lembrar que Paris devia ser a segunda cidade portuguesa, tal a emigração. Sabes o que aconteceu ao camião? Uns ladrões franceses assaltaram o camião e roubaram os livros. Roubaram, roubaram. Roubaram eles.
Ahahahah.
Tudo isto levava a um mal-estar crescente. Foi diferente no Mundial e estávamos unidos. Há quem diga que o Mundial foi o pior que se passou no futebol português. Está enganado. E se quiserem ver bem a situação, leiam o livro sobre o México-86 do Pedro Adão e Silva e João Tomás. Eles fizeram uma pesquisa bem forte e até descobriram um inquérito esquecido numa gaveta feito por um advogado de Coimbra, esqueço-me agora do nome, contratado pela federação, a dar razão aos jogadores.
Caramba.
Agora se tudo aquilo que se passou antes do Mundial teve influência no resultado final de não passarmos a fase de grupos? Duvido muito. Aquele último jogo não era preciso ganhar. O próprio seleccionador de Marrocos, um brasileiro chamado [Carlos Manuel dá estalos no ar].
José Faria.
Isso mesmo, ele próprio disse aos jornalistas que o empate servia às duas selecções. Só que o José [Torres, seleccionador] mudou ali a táctica e perdemos 3:1. Quando quisemos ir atrás do resultado, já estávamos longe.
Não jogou o André.
Queria chegar mesmo aí, não jogou o André. São opções, nada a criticar. O José deu o onze e fomos para o campo com a missão de ganhar. Só que o André tinha aquela missão importante de ligar a defesa e meio-campo. Faltou-nos isso, perdemos a nossa referência e Marrocos entrou por ali fora. Agora também te digo, seríamos uma selecção candidata a fazer estragos na fase seguinte porque havia qualidade em quantidade.
Claro, é a selecção que tem jogadores do Benfica finalista da Taça UEFA 1983 e do FC Porto finalista da Taça das Taças 1984.
Lá está, lá está.
Vou mudar de flanco: foste capitão de Benfica e Sporting. Mais, jogaste dérbis com a braçadeira por Benfica e por Sporting. O que é isso te transmite?
São momentos que ficam na história, que nos marcam. Porque a braçadeira marca qualquer um. Estou a falar de um tempo em que se era capitão por anos de balneário e, quando entrei no Benfica no início dos 80, havia Shéu, Bento, Diamantino. Aliás, o Diamantino chegou ao Benfica em 1977 e só foi titular indiscutível a partir de 1983. E o Diamantino era uma coisa incrível, incrível mesmo.
Foi emprestado, não foi?
Amora e Boavista. Era muito difícil entrar no Benfica. E sair também. Uma vez, o Atlético Madrid quis-me. Mas ninguém conseguiu chegar à fala com o Fernando Martins. Está bem está. O Benfica estava bem, vender para quê? Nesse tempo, o Benfica pagava bons prémios.
Pois, bem sei. Os salários eram mais baixos. Até houve um tempo em que tu, o Diamantino e mais alguém foram pretendidos por Braga, que pagava mais que o Benfica.
Era o José Luís, o terceiro. E sim, pagavam mais que o Benfica. Mais, muito mais, hã! E até há uma história engraçada porque o Benfica foi à final da Taça de Portugal e o Fernando Martins disse ao treinador para não meter o Diamantino nem o Carlos Manuel. E o treinador só lhe disse ‘então vá lá você dizer isso’. Ahahah, o Fernando tinha coisas.
Quem era o treinador?
Csernai.
Então não ganham essa taça ao FC Porto e o Benfica até mete a boca no trombone a dizer que tu e o Pietra é que fizeram a equipa?
Ahahahah, isso não foi bem assim. O Csernai chamou-me a mim e ao Pietra a dizer-nos que queria meter o José Luís a trinco no lugar do Shéu. Nós ficámos de boca aberta, o Csernai tinha ali uma pancadinha na cabeça.
Então?
Ele era do tipo marcar treino às dez da manhã no dia seguinte e, depois, não aparecia à hora marcada. Quando lhe telefonavam para casa, dizia que não, que nunca tinha dito nada disso e dizia que era às quatro da tarde.
E vocês?
Ficávamos lá, fazer o quê? Outra: passámos a época toda a fazer o mesmo treino entre cruzamentos e remates à baliza. Uma coisa do arco da velha, o Csernai vinha do Bayern. E ficámos espantados como é que alguém só treinava remates e cruzamentos. Se não me engano, até foi a época em que marquei mais golos.
Lindo.
Mas também treinava mais remates ainda à baliza uns 25 minutos com o Eusébio, no final dos treinos.
E à baliza?
O Bento. Ele não deixava ninguém mais treinar.
E que tal?
Fazíamos apostas de golos. Ainda ganhei algumas, mas o Eusébio era impressionante. Já era perfeito como jogador e, agora como treinador de guarda-redes, embora não o fosse oficialmente, aperfeiçoou a técnica do remate. Era remates e também trivela atrás da baliza, bem atrás.
Com os sócios?
Claro, isso era o divertimento deles. E o nosso, claro. Eles ouviam as nossas bocas, vibravam com os remates. E esse treino depois facilita a nossa missão em campo durante o jogo. Porque nem sempre sabemos onde está a baliza e, às vezes, rematamos com a cabeça para baixo. Só que sabemos onde estamos e sabemos onde está o nosso companheiro, por experiência acumulada. O ouvido é muito importante. Se disserem estou aqui e a tua cabeça estiver ligada ao teu pé, vais meter a bola onde queres e para quem queres. Mas isso é num tempo diferente, agora as equipas jogam todas condicionadas pelo estilo idêntico. Antes o futebol era muito mais aberto, muito, muito melhor. Era completamente diferente, mais criativo
A minha ideia do futebol actual é: sabemos tanto como os outros jogam que nos esquecemos de jogar o que sabemos.
Exatamente, é aflitivo. E isso tem a ver com a formação. Antes havia liberdade para a criatividade, agora vejo miúdos com sete anos e fintar pinos para rematar à baliza e voltar à fila para esperar pela sua vez. O termo futebol de rua não tem só a ver com a rua. Tem a ver com a criatividade, a liberdade. Se houver isso num centro de estágio, é futebol de rua. É o espírito que conta, o espírito. E é a felicidade de jogar sem obrigações até uma certa idade.
Última pergunta. Já se passaram 40 anos e acho que já se pode falar disso: como eram as festas do Stromberg?
Ahahahahah [Carlos Manuel atira-se para trás]. Não havia as festas do Stromberg, íamos a casa dele uma ou outra vez, sim. Com amigos, amigas.
Cascais?
Ele vivia numa moradia. Agora digo-te: enquanto eu bebia um gin, ele bebia três. Já viste o homem? Era fortíssimo. Nunca mais me esqueço: no primeiro treino, ele deu-nos a todos uma volta de avanço nas corridas de baliza à baliza.
Na mesma época, havia o Manniche, da Dinamarca.
Verdade, mas o Michael era diferente porque chegou aqui sem saber receber bem uma bola. Na época seguinte, já fazia golos de chapéu e tudo. Evoluiu bastante. O Stromberg já chegou cá cheio de jogo. Os dois tinham um elemento em comum: a ética do trabalho. Podiam beber muito, sim. No dia seguinte, era para trabalhar e trabalhavam. Uma seriedade e uma concentração irrepreensíveis. Já agora dizer uma coisa, o Stromberg jogava com tabaco de mascar nos dentes. Aquilo até era horrível, mas ele fazia isso jogo sim, jogo sim. Ele até tinha uma daquelas caixas redondas da graxa com esse tabaco lá dentro. Vê lá bem, isso é mundo. Nos anos 80, um plantel português como o Benfica ter um sueco e um dinamarquês é do outro mundo. Porque conhecíamos maneiras de pensar diferentes. Também aconteceu com o Filipovic, por exemplo. Ele vinha da Jugoslávia e ainda hoje janto sempre com ele quando aparece em Portugal. O benfica deu-me mundo. O do futebol e também da música, do teatro.
Por isso é que uma vez, estavas já tu a jogar no Sion, na Suíça, aparece-te um determinado senhor à porta?
O senhor Carlos do Carmo. Digo-te: quando abri a porta, caiu-me tudo e voltaram a subir para o mesmo sítio. Era o senhor Carlos do Carmo acompanhado por dois violas, um deles era o Chainho. Estamos a falar de 1988, ele já era um senhor, mas não o conhecia pessoalmente. Ele diz-me ‘olá Carlos, vim aqui de propósito para conhecê-lo’. São coisas que nos marcam, estás a ver?
E tu?
Fiquei a olhar, nem sabia onde me meter. Ficámos com uma amizade grande, era beijo de pai para filho. Incrível. Tivemos uma ligação boa e falhei três dias segudos aos treinos do Sion, porque disse ao presidente que ia assistir aos dois concertos do Carlos, um em Genebra, onde ele estava a dormir, e outro em Lausana.
Espectáculo. Muito obrigado, Carlos.
Obrigado eu, grande abraço.