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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Guerra justa

11 mar, 2022 • Opinião de Henrique Raposo


Quando a Rússia ataca a liberdade, é nosso dever resistir e ajudar quem está nessa guerra justa de resistência a um império ora comunista ora fascista, mas sempre ressentido, sempre maldisposto, sempre ensimesmado, sempre patético na sua arrogância e pompa, sempre decadente e sempre disposto a culpar os outros pela sua própria decadência.

O que deve fazer um católico perante uma guerra? Os desejos de paz já ficaram para trás, a guerra já rebentou e, se a potência agressora e até quasi-fascista for forte, essa guerra não vai desaparecer por milagre. O pensamento mágico não trava tanques. A posição pacifista inicial é questionada e ficamos perante uma decisão moral: ou recusamos ver o que se passa ou assumimos uma posição em defesa de um lado. A destruição de um exército e a inerente morte de determinados seres humanos é – neste cenário – o mal menor. Os símbolos das maiores revoltas contra Hitler são cristãos; católicos e luteranos assumiram que a violência era a única forma de travar aquela violência. Em Portugal, frades e padres pegaram em armas contra a invasão francesa que roubou, pilhou e violou.

Agora, nesta guerra que temos pela frente, a derrota do exército russo é o melhor que pode acontecer, não só para os ucranianos, mas para todos nós. A derrota militar de Putin e desta Rússia proto-fascista é a única meta moralmente aceitável num cenário trágico onde não existem boas escolhas, isto é, onde não existem caminhos isentos de sangue. Quando uma crueldade tão amoral ataca aqui na terra, o católico não pode ficar em cima do muro da neutralidade e do pacifismo. E raramente tivemos uma guerra tão clara nos seus contornos morais. Nos últimos dias, a Rússia, que já era uma das grandes ditaduras do mundo, deu passos em frente em direção a um novo tipo de fascismo pan-eslavista. Ou seja, em trinta anos, a cultura russa saltou do comunismo que desumanizava pessoas das classes não proletárias e entrou no fascismo pan-eslavista que desumaniza as pessoas de raças não eslavas, não russas. Além disso, não reconhece os direitos individuais dos próprios russos. Não há direitos humanos e individuais na Rússia, que só consegue operar através dos grandes conceitos abstractos e desumanos, a Classe, a Nação. Ouvido pelo escritor Andrew Solomon em “Lugares Distantes” (Quetzal), um poeta russo chamado Dimitry Zuzmin diz que “na Rússia não existe a ideia de respeito por uma pessoa simplesmente por ser outra pessoa, um indivíduo único”. Como é que se responde a uma sociedade assim quando esta sociedade decide atacar-nos?

Antes de tudo isto começar, um cantor russo era perseguido se cantasse em ucraniano. Aconteceu com Andrei Makarevich, o “Paul McCartney da Rússia”. Após ter cantado para crianças ucranianas na Ucrânia, os seus concertos começaram a ser cancelados. Aconteceu o mesmo com o rapper Noize MC. Na Ucrânia, cantou uma canção em ucraniano e recebeu em palco uma bandeira ucraniana. Resultado? Começou a ser perseguido pelas autoridades, a polícia aparecia nos concertos ou no hotel. Estamos ainda a falar de um país que legitima através da propaganda e da lei os ataques a homossexuais e que limita todos os dias os direitos das mulheres. É como se a Rússia fosse uma Arábia onde as mulheres até podem andar de minissaia. Mas os direitos femininos acabam aí. A Rússia está cheia de gangues, bandos e grupúsculos políticos que fazem lembrar os jihadistas: odeiam a liberdade dos indivíduos, a liberdade das mulheres e de homossexuais, a liberdade de qualquer pessoa que pensa de maneira diferente do Kremlin.

Porque é que a Rússia acaba sempre nesta barbárie política que despreza a sacralidade da cada pessoa, de cada indivíduo, e que só reconhece o “nós” e os “traidores”? Antes falavam em traidores da “classe”, agora são os traidores da “nação”. A resposta é longa, mas acaba sempre na mesma ideia: quando a Rússia ataca a liberdade, é nosso dever resistir e ajudar quem está nessa guerra justa de resistência a um império ora comunista ora fascista, mas sempre ressentido, sempre maldisposto, sempre ensimesmado, sempre patético na sua arrogância e pompa, sempre decadente e sempre disposto a culpar os outros pela sua própria decadência.


Comentários
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  • João Lopes
    11 mar, 2022 Porto 09:36
    Análise profunda e verdadeira!