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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

A culpa não é sempre dos pais

16 jul, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


No bem e no mal, a nossa co-responsabilidade nos actos dos nossos filhos é muito mais reduzida do que nós gostaríamos de pensar. E, sim, este escasso poder paternal pode ser libertador para a paternidade moderna, que está à beira de um esgotamento.

À luz de dois mil anos de Evangelho, há muitas marcas do Antigo Testamento que nos deixam abismados. É mesmo outro país mental. A par dessas características chocantes, há outras que compreendemos mesmo quando as consideramos erradas ou ultrapassadas. Dou um exemplo: a culpa passava do pai para o filho. Se o meu pai cometesse um pecado ou um crime, o opróbrio passaria para mim; e de mim passaria para os meus filhos, netos do criminoso. A culpa não era individual, era familiar. Nós já não pensamos assim. O Evangelho corta com esta culpa colectiva e transformada num mal hereditário: não, não posso ser responsabilizado por atos cometidos pelo meu pai.

No entanto, não deixamos de ser permeáveis a esta ética. Os alemães de 2021 ainda sentem culpa pelo holocausto, apesar de terem nascido muito depois de 1945. A lógica do politicamente correcto moderníssimo está assente nesta inclemência do Antigo Testamento: considera-se que um branco de 2021 tem de pagar moral e até monetariamente o facto de ser trineto de proprietários de escravos. E, claro, é fácil encontrar romances e filmes que lidam com filhos que sentem uma culpa asfixiante por actos hediondos cometidos pelos pais. Estou a lembrar-me, por exemplo, do “Le Village de l’Allemand’ de Boualem Sansal. Já a série "Happy Valley" lida com uma variante desta ideia: será que a sociopatia passa de pais para filhos por transmissibilidade genética? Um filho de um psicopata será necessariamente um potencial psicopata?

Seja como for, a sociedade como um todo já não se mede pelo critério do Antigo Testamento. Diria até que saltámos de um extremo para o outro. Se nas velhas sociedades a culpa passava do pai para os filhos, na nossa sociedade assume-se que os actos dos filhos são sempre culpa dos pais, o que revela escassa consideração pela ideia de livre arbítrio. Somos uma sociedade obcecada com o controlo racional e mecânico do mundo, não toleramos acasos, imprevistos e uma natureza exterior à nossa vontade. Mas sucede que essa natureza exterior à nossa vontade começa logo nos nossos filhos. Um pai pode educar um filho da forma mais correta possível, mas esse filho pode crescer para se tornar um traste, porque esse filho é uma pessoa com uma alma absolutamente independente do pai.

Isto pode ser frustrante, sem dúvida, mas também é libertador. Não, os actos das minhas filhas, bons ou maus, não são consequências directas e imediatas da minha educação; elas não são carrinhos telecomandados à minha disposição. A educação que lhes transmito é apenas uma parcela de uma extensa fórmula que determina as suas ações livres e conscientes. É assim no lado solar, quando elas se revelam gentis com alguém necessitado ou quando pintam um quadro bonito. É assim no lado lunar, quando se portam mal. No bem e no mal, a nossa co-responsabilidade nos actos dos nossos filhos é muito mais reduzida do que nós gostaríamos de pensar. E, sim, este escasso poder paternal pode ser libertador para a paternidade moderna, que está à beira de um esgotamento. A paternidade moderna é esgotante, porque nós, pais moderninhos, somos parte da tal sociedade obcecada com o controlo e antecipação racional do mundo. Só que os seres humanos, a começar nos nossos filhos, não são moléculas dentro de uma fórmula previsível e quantificável. São pessoas com uma alma independente e rebelde.

Não, não chamem já a segurança social. Não estou a dizer que as crianças devem andar ao Deus dará ou que a educação é irrelevante. Estou apenas a dizer que a sociedade tem de perceber que as crianças não são títeres e que culpa (e o mérito) não é sempre dos pais.

Comentários
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  • maria tiana
    16 jul, 2021 Lisboa 16:42
    Continuando..... Os filhos precisam de sentir os cheiro dos Pais.... Educar passa por uma sapiente paciência de saber esperar.... ( tal como Antigo Testamento em que ESPERAR é a palavra chave....) Educar é um olhar atento à semente que cresce e a semente depois de grande agradece. EDUCAÇÃO É UMA MÚTUA GRATIDÃO... Sr. Raposo, não invoque as Sagradas Escrituras para expandir as suas filosofias....
  • maria tiana
    16 jul, 2021 Lisboa 16:18
    Mais disparates do Sr. Raposo. Pois o nosso problema é não compreender o Novo testamento com base no Antigo. É a mesma coisa que tirar o alicerce de uma casa e querer ficar com a telhado em suspenso. O Antigo testamento não é para desaparecer, é para ficar, como ponte que conduz ao aperfeiçoamento da doutrina. O percurso humano é um ciclo vicioso e viciado.... Só sai fora deste vício os que percebem que a vida tem outros voos que libertam... Sim, os Pais têm sempre culpa. Porque por mais perfeita que seja a educação dos Pais há sempre erros, assim como o egoismo, orgulho, possessão disfarçados nos Pais como se fosse amor e zelo que marcam o crescimento da criança. Dizem os antigos que o que se aprende no berço leva-se para a Vida... É Verdade! Sr. Raposo ainda não se deu conte que não pode abordar em pequenos artigos temas tão complexos que exigem reflexão caso a caso. Há Pais tão zelosos na educação que deprimem de tal maneira os Filhos que eles quando se soltam são piores que as cabras fora do curral. Outros Pais dão tanta liberdade para dizerem que são modernos que mais tarde na extravagâncias dos Filhos vimos que lhes faltou aplicação do Antigo testamento: castigo e umas boas e valentes palmadas.... Sr. Raposo o novo testamento de hoje é a carneirada de psicólogos que determinam a vida dos pais em relação aos filhos. Fique sabendo que a educação não é uma questão de métodos. Educa-se sendo presença sempre presente, mesmo sem palavras...
  • Ivo Pestana
    16 jul, 2021 Funchal 11:38
    O ser humano é um "produto" do meio em que está inserido. Logo, a família, os amigos, a escola, as políticas tontas dos governos, as condições de vida, as opções...e no fim a genética de cada um, tudo contribui para a formação da pessoa. Mas existem mais fatores e quando era pequeno, não precisava de tantos objetos e era mais feliz, pois muitos agora têm tudo e andam sempre tristes, desanimados e insatisfeitos. Percebo, mas não vou explicar o porquê...mas uma vez li, "que a maior riqueza não é o ter, mas sim o saborear". Graças a Deus sou Cristão e isto não me deixa ir abaixo.