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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Desligar a máquina

20 abr, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


No caso do bebé Alfie Evans, não estamos perante um cenário em que a máquina auxilia a vida, mas sim perante um caso em que a máquina é a vida.

Na luta contra a eutanásia, um dos piores erros que os cristãos podem cometer é a defesa do exacto oposto: a distanásia, o encarniçamento terapêutico, o finca-pé emotivo e comovente perante a morte. Tragicamente, foi isso que aconteceu no caso do bebé Charlie Gard e é isso que está a acontecer no caso de Alfie Evans, um bebé de dois anos que está internado em Liverpool com uma doença degenerativa sem diagnóstico e sem cura. Este bebé está no ângulo morto do conhecimento humano; só Deus compreende o que ali se passa. Evans encontra-se num estado vegetativo e só está mecanicamente vivo porque o ligaram a um suporte artificial de vida; sem essa máquina, já teria encontrado a morte natural. Passados dois anos, os médicos querem desligar a máquina. Os pais, ao invés, querem o encarniçamento terapêutico e, como são católicos, invocam o fantasma da eutanásia ao mesmo tempo que pedem a transferência da criança para um hospital do Vaticano, que já garantiu a perpetuação artificial desta vida. O hospital de Liverpool e os tribunais ingleses recusam este pedido de transferência.

É preciso coragem para dizer que os médicos e os tribunais têm razão neste caso. O Leviatã nem sempre é o vilão. Até devemos ter coragem para dizer que a Igreja comete um erro quando se intromete nesta questão. Com esta atitude, o tal hospital do Vaticano fomenta a emoção da distanásia, uma emoção que, apesar de ser comovente, parte de pressupostos errados. A Igreja erra, porque está a transmitir a ideia de que estamos perante um caso de eutanásia. Ora, a eutanásia implica um acto que mata o doente, é uma antecipação humana e artificial da morte, é a recusa da morte natural. O que está aqui em causa é precisamente o oposto: ao manterem a máquina ligada, os pais da criança estão a entrar na distanásia, que também devia ser criticada pela igreja. Aliás, na primeira instância, a diocese de Liverpool tomou a posição correcta: distanciou-se, não se intrometeu, não fez desta tragédia uma bandeira fácil (e errada) da luta contra a eutanásia. Repare-se que não estou a defender a retirada da técnica e da medicina. Os bebés prematuros morriam há cem ou cinquenta anos; hoje sobrevivem graças a máquinas que os auxiliam até terem o tamanho e as capacidades normais. No caso do bebé Alfie Evans, não estamos perante um cenário em que a máquina auxilia a vida, mas sim perante um caso em que a máquina é a vida. Compreendo a emoção dos pais, percebo o seu estado de negação, não critico nem julgo. Não sei como reagiria numa situação semelhante. Mas já não compreendo a cedência do Vaticano a esta emoção que baralha conceitos, que confunde valores e que nos faz perder força no combate essencial (eutanásia). A igreja não está neste mundo para dizer aquilo que queremos ouvir, nem para entrar nos discursos fáceis e comoventes. Entre outras coisas, a igreja está neste mundo para nos ajudar a enfrentar a dor e a perda. Quando um católico não vê as coisas com clareza, a tarefa da igreja não é reforçar a miopia emocional do crente. A sua tarefa é fornecer uma lente nova que restitua a clareza. Pode ser uma lente difícil, mas é a lente certa.

Se somos contra a eutanásia porque se trata de uma imposição artificial da vontade humana sobre a morte natural, porque é que aqui não aceitamos a morte natural? Porque é que aqui patrocinamos um artifício humano que fura e profana o corpo de um bebé indefeso só para depois gritarmos com bravata “a vida triunfa”? Não faz sentido. Ser católico também implica aceitar a morte, mesmo quando se trata de uma criança. Essa aceitação é dura, porque temos de nos confrontar com o mistério do mal e com o silêncio de Deus perante esse mistério. Podemos até passar pelo desespero de Job, porquê Senhor?, porque é que aquele bebé nem sequer começou a viver?, como é que permites esta injustiça no próprio tecido da Criação? Mas, no final, temos de acabar na humildade de Eclesiastes: Senhor, entrego-te a minha dor e a minha revolta. Perante tragédias como as de Evans e Gard, a Igreja devia usar este triunfo da Bíblia, e não o triunfo da máquina hospital. Até porque o culto dessa máquina é paradoxalmente um das armas da cultura que legitima a eutanásia.

Comentários
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  • Paulo Monteiro
    07 mai, 2018 Lisboa 14:22
    Creio que o autor se precipitou na análise que fez do caso, ao enquadrá-lo na situação de distanásia. Não só o pequeno Alfie não estava em estado vegetativo, como conseguiu manter-se vivo por mais 5 dias depois de lhe terem retirado a ventilação mecânica. Acredito que não tivesse possibilidade de sobreviver à doença, mas entendo perfeitamente a reacção dos pais quando o hospital e os tribunais decidem empurrar para a morte uma criança que não está no estado vegetativo (olhos abertos, a piscar, chuchando a chupeta que está na boca) e que ainda luta pela vida.
  • Magna
    27 abr, 2018 São Paulo 02:21
    O artigo fica agora desatualizado e errado, diante dos novos fatos. A opinião do autor de que a única coisa que mantinha a criança viva eram os aparelhos foi desmentida após mais de seis horas respirando sozinho, sem o uso de aparelhos. Continuo com o Vaticano.
  • Ana
    26 abr, 2018 Sintra 16:05
    Afinal a máquina não era a vida... E esta, hein? ;)
  • Vera
    21 abr, 2018 Palmela 14:34
    Quando um bebé nasce com problemas graves, que a medicina não tem como resolver, aí o problema é outro! e a mãe nem deve saber! porque se nascem bebés, que por negligência médica, morrem asfixiados no parto, também, podem morrer por asfixia em casos muito graves, para que se acabe com o sofrimento da mãe e do filho... assim o desgosto de perder a criança, é menor! Numa clínica de fisioterapia, salvo erro em 1970, conheci uma mãe jovem, com um filho que perdeu a memória, a fala, as pernas paralisaram... (só visto) num acidente violento de automóvel, em que o pai teve morte instantânea! aquela mãe lutou anos, pela recuperação do seu filho, que tinha 6 anos e não morreu junto do pai, porque Deus não quis! Cada caso é um caso... não podemos medir tudo pela mesma bitola! matar uma pessoa que foi saudável e deixou de ser, ou se tornou velho, porque tudo na vida tem um preço! É bom que as pessoas parem para pensar! não é, Henrique Raposo? pois é.
  • João Lopes
    20 abr, 2018 Viseu 19:28
    Excelente análise de Henrique Raposo! A defesa da vida, em todas as circunstâncias, é a defesa da humanidade. Os promotores da cultura da morte − aborto e eutanásia − atentam contra a dignidade da pessoa humana: são os "bárbaros" e os "monstros" destes tempos… A eutanásia e o suicídio assistido são diferentes formas de matar. Os médicos e os enfermeiros existem para defender a vida humana e não para matar nem serem cúmplices do crime de outros...
  • Duarte
    20 abr, 2018 lisboa 15:41
    É fácil argumentar a quem é pela vida.Dificil é aguentar economicamente estes casos até encontrar solução.A cellulas estaminais,a capacidade futura de intervir geneticamente ,de desenvolver órgãos compatíveis de conhecer todos os segredos biológicos e podêr restaurar- levará á vida eterna na TERRA.Contrabalançar o atual possível e o futuro resolutivo é a questao. Acredito na investigação e ultimo patamar de qualquer ciência.a questâo é vem em tempo útil para os atuais sofredores,nao sabemos portanto----------prolongar é esperança..
  • João Lopes
    20 abr, 2018 Lisboa 13:53
    Até quando a repetição do mesmo tema para opinião e literatura? Os leitores mais atentos vão julgar que existe uma obsessão ou paranóia por Henrique Raposo pela eutanásia. Depois, esta relação ou ligação entre assuntos bíblicos e a eutanásia torna-se doentio. Como disse (e bem) Albert Camus, «A estupidez insiste sempre.» Recomenda-se a Henrique Raposo a leitura de Albert Camus.