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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​NEM ATEU NEM FARISEU

Fúria na fé

10 nov, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Estamos tomados por uma apatia cínica. Uma cultura que apenas está disponível para gozar ou desconstruir, nunca para defender, construir, acreditar

O cinismo é a marca do nosso tempo. É verdade que não é nova. Já Isaías se queixava: “foi eliminado o tirano e desapareceu o cínico” (Is 29, 20). Mas o certo é que este cinismo engraçadista é o ar que respiramos aqui e agora. Como tem dito Father John Misty, estamos tomados por uma apatia cínica que repudia – à partida – qualquer tipo de crença ou ideia que supere o nosso umbigo e o nosso mural de facebook.

Esta cultura apenas está disponível para gozar ou desconstruir, nunca para defender, construir, acreditar. É como se “acreditar” fosse um verbo conjugável apenas por Neandertais sem qualquer sofisticação intelectual. Este cepticismo radical infectou toda a cultura, do cinema à música, passando pelo pensamento e literatura. A criação intelectual e artística tornou-se indiferente à verdade. E o que resta quando se desiste da procura da verdade?

Fica a ironia, não a ironia como estilo (uma forma), mas a ironia enquanto ética (uma substância), uma ironia em doses industriais que impede qualquer momento de franqueza e, sim, de fraqueza, uma ironia que não descansa enquanto não desaperta todos os parafusos de todas as narrativas religiosas, éticas, políticas, históricas. O que sobra quando se deixa de contar histórias e narrativas? Resta a desconstrução, resta uma escrita circular que se vigia e que vigia os outros, sendo que essa vigilância assenta num tabu, o tabu pós-moderno: não se pode acreditar em nada, só pode haver descrença; “crer” é um verbo ridículo. Sobra assim uma linguagem que anda em círculos como um cão atrás da cauda, uma meta-linguagem que fala da linguagem e não do mundo, um dispositivo pós-moderno que nos afasta das questões que assombram a humanidade desde o tempo de Isaías: o que é o amor?; como se lida com a morte?; como falar com Deus?; o que pensar sobre esse terramoto que é ter filhos?; como é que pensamos a pátria, o que fazemos quando a nossa terra (Atenas) é a negação da nossa moral (Jerusalém)?; existe perdão?; o que fazer com o pecado?; o que é a liberdade e o livre arbítrio?; como lidar com o mal que pressentimos em nós e no própria estrutura do mundo?

Felizmente, algo está a mudar. Ainda há dias um artigo no TLS tinha por título um ensaio cujo título diz tudo: “Post-Modernism is Dead. What Comes Next?”. O que vem a seguir? Um regresso a casa, um êxodo em direcção a uma verdade clássica. Um pouco por todo o lado, uma nova geração de artistas já está em guerra aberta com esta cultura cínica. Aliás, hoje em dia, o charme do artista iconoclasta está com aquele que acredita em Deus, não no ateu; o encanto da rebeldia criadora está com o conservador que nos diz que há coisas eternas e são essas que vale a pena cantar. Em Portugal, esta revolta é evidente na música de Samuel Úria, de Tiago Cavaco e Manuel Fúria.

Manuel Fúria e os Náufragos é uma banda que me interessa porque parece impermeável ao cinismo. Este escudo leal começa logo no som. É difícil explicar o que é um som cínico ou que é um som franco e preocupado com a verdade, mas a verdade é que sinto uma energia sinfónica e luminosa em algumas músicas de Fúria, “20 mil naves” e “Aquele Grande Rio”, por exemplo.

Ouço-as de punho cerrado, rendido à esperança que respira através destes acordes. No meu estendal de memórias, fazem-me lembrar os hinos dos Arcade Fire, “Wake up” e “Afterlife”. Acho que já o escrevi noutro lado: ao som destes dois hinos dos canadianos, já dancei e chorei abraçado às minhas filhas. Neste abençoado e frio Novembro, tenho repetido a cena com os “20 mil naves” e “Aquele Grande Rio”: quando chegamos da escola, dançamos os três numa comunhão que é uma espécie de Pai Nosso pop: “é o Teu rosto que eu ainda procuro (...) ainda sou eu que bate, quem bate à Tua porta”. Enquanto elas terminam a dança, eu fecho a letra: “desviei-me por atalhos” mas “há uma vila nova dentro de mim”. Há aqui uma crença na música enquanto veículo de uma verdade: “É um penedo antigo, imóvel, impossível de derrubar”. Não é a música pela música, a música como piscadela de olho melómana; é uma música que procura algo exterior à música, é a música como veículo de uma história, de histórias que falam de amor e amores, família, Deus, medo da morte, medo pelos nossos filhos. Isto é importante, porque o cinismo não determina apenas e só um desprezo por ideias como Deus ou o mal; o cinismo vai mais fundo e determina uma descrença em relação à própria arte, em relação à própria narrativa enquanto elemento catártico. No cinema, isso é muito claro. Tarantino ou Shyamalan nem sequer acreditam nas histórias que estão a contar, nem sequer acreditam no cinema enquanto veículo de uma história humana com uma carga moral (não confundir “moral” com “moralista”). É por esse motivo que fazem um cinema enrolado sobre si próprio, um cinema ensimesmado que fala de cinema e não do mundo, um cinema para agradar a cinéfilos com citações e não para tocar ou dilacerar seres humanos. Por exemplo, “A Senhora da Água” podia ser uma fábula maravilhosa sobre medo e fé, mas Shyamalan não acredita na história, acabando por destruí-la com inúmeras desconstruções alegadamente sofisticadas. Na literatura há casos assim, na música também. O som de Fúria e dos Náufragos nega isso. Atira-se à jugular da verdade. Daqui a uns anos, tocarão com uma orquestra sinfónica nas costas.

A verdade do som está ancorada na verdade das letras. E aqui volta a ser evidente um ponto já defendido: em 2017, o iconoclasta é o conservador e o patriota; o rebelde é o gajo que casa e tem filhos, que acredita em Deus e na esperança que Ele nos abre, a esperança de Caleb que anda a desafiar os cínicos há quase quatro mil anos em vinte mil naves. É por isso que neste grande e bendito naufrágio, um naufrágio à Jonas, encontramos a ternura de uma letra sobre um bebé (“dorme meu menino”). É por isso que nos confrontamos com o desafio moral e racional que é o amor: “Ó faminto coração/ó que devoras em vão/querias que a língua do amor/fosse igual à da paixão/ Mas não. Vais aprender/vais-te conter/ Acorrentar a fera, endurecer”. O amor não é um festival fofinho de afectos, é uma luta contra os nossos impulsos naturais, é renúncia e contenção em nome de algo superior que endurece e faz crescer. É por isso que ouvimos aqui - tal como em Springsteen ou U2 – grandes declarações de amor a Deus como os já citados “20 mil naves” e “Aquele Grande Rio” e o supersónico “Cavalos Brancos”, “há cavalos brancos para cavalgar” porque “a Verdade tem de entrar”. É por isso que ouvimos uma fé inabalável num Portugal encostado ao Quinto Império, “no peito uma cruz (...) a invenção, a ilusão, Portugal, Ele vai voltar”. E, acima de tudo, é por isso que pressentimos o purgatório e a divisão em algumas letras (“recusar ser refém de um tempo dividido”; “meu remorso de todos nós”). É por isso que sentimos o medo de alguém que não sabe se sairá deste purgatório, desta incapacidade para vencermos o tal cinismo (“Canção Infinita”):

“Daqui a muitos anos irei dizer

na minha vida nunca fui capaz

de ver as coisas com outros olhos

amar as coisas com outros olhos

e agarrar o mundo pelo pescoço com estas mãos

com estas mãos

No entroncamento que habito

Apenas fui capaz de escrever o mesmo refrão

Da mesma canção

As mesmas duas notas

A mesma variação”.

Moral da história, meu doce príncipe? O cinismo até pode vencer, mas temos o dever de contra ele lutar. Há que ir a combate, ao bom combate, com fúria na fé. “Não temais”.

Comentários
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  • Vera
    10 nov, 2017 Palmela 15:14
    Amanhã, é que é, São Martinho! " No dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho"; ou então, o Henrique Raposo não se enganou a conjugar o verbo 'temer', parece que é habitual ele ouvir os outros, à volta dele a ... darem pontapés na gramática! Bravo, Henrique Raposo! a ironia! o cinismo! é isso tudo! é isso mesmo!!! A-poi-a-do.
  • Vera
    10 nov, 2017 Palmela 14:06
    ??????????????????????????
  • Vera
    10 nov, 2017 Palmela 13:40
    “Não temais” No fim de um texto tão bem pensado, não precisava de escrever "demais", borrou a pintura do quadro! ainda está a tempo! pegue no pincel e dê um pequeno retoque, na última flor desenhada! antes que venham aqueles das belas artes, armados em escritores para aqui, fingir que nunca se enganam... ( Renascença Agradeço, que apaguem este meu comentário, depois do Henrique Raposo, o ler).
  • João Lopes
    10 nov, 2017 Viseu 10:15
    Este excelente artigo de HR convida a pensar com realismo e liberdade no mistério da vida que nos foi oferecida: «Este cepticismo radical infectou toda a cultura, do cinema à música, passando pelo pensamento e literatura. A criação intelectual e artística tornou-se indiferente à verdade. E o que resta quando se desiste da procura da verdade?...o tabu pós-moderno: não se pode acreditar em nada, só pode haver descrença», atitude mais própria de escravos e mentecaptos…