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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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NEM ATEU, NEM FARISEU

Pedofilia na igreja: ficar e limpar

24 fev, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Ter fé é ficar e limpar. Tal como faz o bispo O’Malley, tal como faz o Papa Francisco.

A minha caminhada até à fé teve muitos passos. Um dos últimos é um pouco estranho e talvez impossível de explicar. Mas vou tentar. Há dois ou três anos, a SIC passou um “60 Minutos” centrado no bispo Sean Patrick O’Malley (Boston), o responsável do Vaticano pela investigação aos casos de pedofilia na Igreja. A peça é tensa, sente-se o desconforto de O’Malley.

Afinal de contas, parte da sua Igreja, sobretudo em Boston, havia sido corrompida por este pecado abjecto – uma triste recordação de que a Igreja é feita por homens. Sente-se a tristeza de O’Malley, é verdade, mas também se sente a sua coragem. Ele sabe que a Igreja sofreu um golpe duro, mas também sabe que a sua fé sobreviverá e, em nome dessa centelha, calça galochas teológicas e entra no lodo, no lodo da sua própria Igreja, no seu próprio lodo.

Na altura, esta coragem comoveu-me, porque o mais cómodo seria bancar o papel do puro e recusar dar a cara pela Igreja naquele momento complicado. Aplicando o raciocínio ao meu caso, teria sido mais cómodo para mim, sobretudo como cronista e escritor, continuar fora da Igreja, recusando qualquer contacto com uma instituição marcada por esta sombra moral e mediática. Mas, lá está, esse teria sido o caminho mais fácil. Hoje tenho um certo orgulho em dizer que reentrei na Igreja numa altura em que a sua porta era de facto estreita.

Há dias, já na certeza da minha fé, vi o filme “Spotlight”, que mostra a investigação jornalística que revelou o escândalo de pedofilia na Boston de O’Malley no início do século. É um filme duro. Parei várias vezes para ir beber água, uma clara desculpa para não chorar, uma forma de lidar com o incómodo: centenas de padres da minha Igreja abusaram de crianças de forma sistemática e a hierarquia escondeu o problema. Há cenas que cortam: o repórter “português” (personagem de Mark Ruffalo) a olhar comovido para o coro infantil na igreja; a repórter (personagem de Rachel McAdams) que mostra a investigação final à sua avó católica, sabendo de antemão que aquilo é a destruição de parte do seu mundo. A avó faz o mesmo que eu, “um copo de água, por favor”.

Onde é que um católico encontra aqui conforto? Ao início, não há conforto, não pode haver. Há que lidar com o esterco na nossa própria casa. Salvar a Igreja não passava nem passa por entrar em negação, não passava nem passa por ver aqui uma conspiração dos média, não passava nem passa por encontrar “factos alternativos” para defender a reputação da Igreja.

É que a reputação da Igreja ficou danificada não pelo facto em si, mas sim pelo encobrimento da hierarquia e pelo desejo do paroquiano de não ver. Portanto, apontar o dedo e ficar era e é o único caminho. É preciso ter essa coragem católica para enfrentar o purgatório. E o conforto talvez comece aqui.

Um filme duríssimo sobre a Igreja tem uma estrutura católica do princípio ao fim: um inferno de lodo no início, um purgatório de confissão difícil pelo meio, uma pequena luz no final.

Ter fé é ficar e limpar. Tal como faz o bispo O’Malley, tal como faz o Papa Francisco.

Comentários
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  • Sepulveda
    28 fev, 2017 Lisboa 09:38
    A pedofilia ainda é crime.A única medida salutar será a limpeza total dos quadros da igreja que a praticam sem hesitação e adoptar medidas preventivas /dissuadoras para jamais sermos confrontados com episódios semelhantes.Quem confiará os seus filhos á igreja nas diferentes atividades,catequese etc .Ninguem.Os católicos praticantes cada vez mais se afastarao do ensino religioso e dos pregoes semanais.Há falta crescente de credibilidade e a debandada continua tornará residual a sua presença na Igreja.
  • Augusto Saraiva
    27 fev, 2017 Genève - Suiça 08:46
    O pecado mais abjecto deve ter começado em África, mais precisamente em Angola, onde ficaram muitos "cabritos e mulatos" analfabetos, porque eram filhos de padres!... Não puderam ir para a escola porque não tinham certidão de baptismo: o único documento que era obrigatório apresentar para a matrícula escolar se efectivar; Isto nos anos 30 a 60! Se um ou outro foi baptizado e entrou para a escola primária, ficou para toda a vida com o carimbo de filho de pai «incógnito»... Dura, mas é a verdade que acho não ter remissão possível.
  • MASQUEGRACINHA
    24 fev, 2017 TERRADOMEIO 18:35
    Tentou explicar-se e explicou-se muito bem. Talvez o tema lhe venha a merecer também algumas palavras dedicadas à coragem daqueles que, expondo o seu sofrimento, obrigaram enfim a hierarquia e o paroquiano a TER que ver... Desses que tanto sofreram e se expuseram, quantos terão "conseguido ficar depois de apontar o dedo"? Para muitos, a porta ter-se-á tornado, compreensivelmente, demasiado estreita. Mas, quem sabe? Se calhar, ficaram mais do que se suporia, como verdadeiros exemplos e símbolos viventes da "coragem católica" de que fala, da fé que a tudo resiste, mesmo ao escândalo da própria Igreja. Falar deles é reconhecê-los - ou será remexer inutilmente no "lodo"? Disse ontem o Papa Francisco que, perante o escândalo de alguns que se dizem católicos, frequentadores de missas e de associações, compreende-se que haja quem diga que mais vale ser ateu... É certo que se referia a outro tipo de escândalo, concretamente a patrões que se dizem católicos, enquanto vivem vida regalada e não pagam salários aos seus trabalhadores... Mas é uma fácil analogia. Na oportunidade, para quando, também, a abordagem desta temática, tão actual e tão presente no nosso país, dos empresários e banqueiros que se apresentam publicamente como católicos praticantes, frequentadores de missas (quantas vezes em capela privada) e de associações - quando são, em boa verdade, eficazes fazedores de ateus? Gostaria de saber o que pensa sobre este assunto o Sr. H. Raposo, que tão bem se explicou hoje.
  • João Lopes
    24 fev, 2017 Viseu 10:26
    Artigo interessante!
  • Miguel Botelho
    24 fev, 2017 Lisboa 08:32
    Ou seja, ter fé significa no dicionário de Henrique Raposo, «não perdoar», «perseguir», «ser delator». Estas crónicas de raiva e cobardia, são a verdade dos nossos dias. Todos estes meninos ricos e irreverentes, como Henrique Raposo, podem muito bem passar como maus rebeldes quando escrevem, quando na vida real não passam de bons cobardes.