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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Operação Marquês

Sócrates e as fotocópias

16 abr, 2021 • Opinião de Graça Franco


Fosse eu arguida e haveria de querer outra justiça menos injusta. Poupassem-me aos rodriguinhos processuais. Dispensava dois anos e sete mil páginas de explicações esdrúxulas e formalidades. Preferiria poder defender-me em tribunal de uma série de casos que já todos conhecem dos jornais.

Gostava de saber de que escolas saíram estes homens que falam constantemente de “lógica e experiência comum” para alegarem, isto e aquilo, ao mesmo tempo que conseguem os raciocínios mais estranhos, parecendo viver num mundo à parte, num pequeníssimo Portugal onde todos se conhecem e um primeiro-ministro espera que a decisão de um caso tão polémico como o da OPA sobre a PT, no início do século, ficasse à mercê do parecer de um seu secretário de Estado. Um primeiro-ministro incapaz de influenciar a distribuição de pelouros ou a concessão de créditos da CGD.

Um Juiz assim, como Ivo Rosa, tão preservado da pressão da opinião pública que jamais leu um jornal ou ouviu uma mera discussão de café anos a fio. Cego, surdo e mudo, qual encarnação da Justiça propriamente dita, impoluto marciano que aterrou aqui como se fosse na Suécia e que até nas reuniões de condomínio se deverá fazer representar, não vá não encontrar por lá a cultura ética da Finlândia.

De que instituição surgem estes abencerragens que podem anunciar, pomposos, que não cumprirão os prazos legais e só nos farão saber a sua douta opinião depois de levar o tempo que for preciso para a maturar e se dão ao luxo de demorar dois anos a escrever quase 7 mil páginas para nos atirar com elas, ávidos que estamos por saber o final, como quem atira pérolas a porcos. Qual final? Quantos arguidos irão a julgamento e acusados de que crimes. Enfim, tudo o que se exige ao juiz de garantias. Sem grandes adjetivos sobre o trabalho dos pares do Ministério Público, apenas ponderando as provas válidas ou inválidas e a razoável probabilidade de condenação com base em tudo o que foi carreado para o processo em fase de inquérito e instrução. Sem mais.

Depois de dois anos de espera, é duro reconhecer que todos dispensavam que ele viesse explanar a incompetência dos procuradores para, a seguir, ingenuamente, nos explicar como nunca seria admissível acusar de fraude fiscal arguidos por não haver o dever de declarar na papelada do IRS rendimentos obtidos de forma ilegítima e de origem criminosa. Impante o Juiz leu mesmo as alíneas disponíveis e, claro, não havia nenhuma para rendimentos de origem criminosa!

A coisa fazia sentido. Mas, lamentavelmente, a autoridade tributária já resolveu essa questão e tributa na mesma. É caso para dizer que sobrou aqui “lógica”, mas faltou “experiência” para o juiz antecipar um precioso artigo da lei geral tributária (o número 10) que diz, preto no branco, que a ilicitude da riqueza ou rendimento não basta para se furtar à tributação. Além disso, o IRS não é o único imposto e se não pagasse esse o dinheirinho das malas haveria de pagar algum outro: o “selo”, por exemplo, que é um imposto inventado para o Estado cobrar ao contribuinte quando é garantido que já não haverá mais nada a pagar. Mas, mesmo que à época da prática do crime não existisse essa legislação, não seria nunca pedagógico fomentar tal doutrina.

Mas que importa um erro num juiz tão meticuloso que, até ao caso chegar a “julgamento”, talvez já esteja no Supremo? Mesmo não tendo a menor experiência, nem conhecimento da sociedade política, económica e social portuguesa nos tempos de governação de Sócrates. Aliás, de tanto garantir os direitos do arguido acabou por imputar-lhe “um novo” velho e primeiro dos crimes, o de corrupção de titular de cargo político de forma continuada (mas prescrita!) pelo próprio amigo. Ele, que elabora as teses mais estapafúrdias, só não achou normal que se transfiram malas de dinheiro. Ao menos isso! E para tal, curiosamente, aceita a prova indireta. E pior, naquele teatro mediático o povo não viu uma inócua pronúncia, mas um primeiro julgamento. E deste primeiro julgamento do senhor juiz Ivo Rosa, Sócrates dificilmente conseguirá livrar-se. Saiu condenado.

A dita “opinião técnica” do juiz (o esperado despacho de pronúncia), passado um ror de anos desde o início do inquérito, ainda teve direito a leitura “em direto” nas rádios e TV, e cobertura nacional. A decisão que resultar do recurso, já anunciado pelo MP e cujo prazo talvez se estenda até final do ano, nessa altura, será certamente bem menos palpitante. Mesmo depois de passada mais de uma década da prática dos crimes, falidos os banqueiros, desfeitas as empresas, nascido outro país, conheceremos o final. O trânsito em julgado só interessará aos herdeiros.

Será que cada povo tem, no fundo, a Justiça que merece? Se é esta que serve os portugueses, mesmo os nossos pretensos poderosos, como o engenheiro José Sócrates, é caso para perguntar como será a que serve o simples senhor José? Tem isto implicações na confiança no regime? Só não vê quem não quer.

Terá óbvias implicações políticas ver um ex-chefe do Executivo não ser levado a julgamento por “corrupção por ato indeterminado” (agora conhecido como obtenção indevida de vantagem!) porque o crime prescreveu, mesmo havendo fortes indícios que efetivamente “mercadejou com o cargo de primeiro-ministro” e deixou que lhe tentassem comprar a “personalidade”, levando-o a criar um ambiente de “simpatia” a favor de interesses de terceiros em detrimento do interesse do Estado? Tem.

Acho mesmo que só o PS ainda não compreendeu que precisa de fazer um mea culpa por esse triste período de governação socialista. Mais, precisa de garantir que não voltará a acontecer, sabendo que durante os próximos três anos haverá um enxamear de projetos e concursos de adjudicação no âmbito do Programa de Reestruturação e Resiliência que sexta-feira Costa, finalmente, veio apresentar e seguirá para a Comissão Europeia. Nos três anos seguintes chegará aos nossos cofres (Estado, autarquias, universidades, IPSS, empresas…) um pote com 14 mil milhões para desembolsar até 2026.

Fosse eu arguida e haveria de querer outra justiça menos injusta. Poupassem-me aos rodriguinhos processuais. Deixassem-se de debates sobre se havia prova direta ou indireta (coisa que em muitos países já nem é tema de debate, como bem me lembrava, há dias, um dos nossos maiores professores de direito). Dispensava dois anos e sete mil páginas de explicações esdrúxulas e formalidades. Preferiria poder defender-me em tribunal de uma série de casos que já todos conhecem dos jornais e que só não irão ser julgados por erros formais ou mera passagem do tempo. Neste ponto, compreendo a frustração dos arguidos presumivelmente “inocentes”.

Construída aquela tese meio rocambolesca, mas pelo menos coerente pelo Ministério Público, ao estilo das melhores novelas do “Correio da Manhã”, e fosse eu inocente perante “tal cabala” queria lá ser duplamente interrogado, queria era ser finalmente julgado e de preferência por tribunal de júri, e na hora. Em capítulos, em direto, e também para as televisões.

Mas parece que eu não sei colocar-me bem na pele destes arguidos mais dados a um tipo de defesa que prefere a dilação das datas, a ultrapassagem dos prazos, o correr do tempo, o pulular os processos de testemunhas e contratestemunhas. Tipo, convocar todos os amigos do Facebook à data dos factos a depor para dizer o óbvio: não, nunca tiveram nada a ver, nunca souberam, nunca lhes foi sequer insinuado que procedessem ilegalmente (quem diria o contrário?).

Estou convicta que mesmo confirmando-se a tese da acusação, na única parte que Ivo Rosa resolveu “comprar”, já nem os alegados criminosos, tantos anos passados, genuinamente saberão o que o fizeram, como, quando, porquê e para quê. À falta de melhor talvez possam consultar para o efeito a própria acusação, senão quiserem perder o fio à meada. Nisto, Sócrates tem parcialmente razão: não falava em dinheiro e falava a despropósito em fotocópias? Sabe lá. Se a escuta prova que foi assim que disse, não pode contestar. Mas, fotocópias porquê? Na altura já as fotocópias estavam fora de moda.

Comentários
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  • João
    21 abr, 2021 Viseu 09:22
    Excelente artigo de Graça Franco, «Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um bando de ladrões» Agostinho de Hipona (354-430).
  • João
    19 abr, 2021 Viseu 09:52
    «Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um bando de ladrões» Agostinho de Hipona (354-430).
  • Ivo Pestana
    17 abr, 2021 Madeira 15:03
    Tenho poucos estudos, mas uma coisa sei, ninguém pode viver acima das suas possibilidades. Agora, se o faz é muito estranho...
  • Francisco Ferra
    17 abr, 2021 Mira 12:51
    Fantástico artigo de opinião. Como, aliás, é hábito em Graça Franco. Coloque-se o dedo na ferida e exponha-se a vergonha de tão triste capítulo da nossa história!
  • João
    17 abr, 2021 Viseu 10:31
    «Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um bando de ladrões» Agostinho de Hipona (354-430).
  • Maria Oliveira
    16 abr, 2021 Lisboa 23:20
    Excelente artigo! Diz tudo o que há para dizer e di-lo muito bem.