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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Trabalho que não se paga é trabalho

26 nov, 2018 • Opinião de Graça Franco


Ver em cada “colaborador o próximo”, com o que isso implica de profunda empatia, implica romper o ciclo vicioso da obsessão pelo aumento de produtividade e a apropriação desigual do lucro.

Capitalismo e “selvagem” não terão de ir a par? Economia e Amor não são realidades incompatíveis? Gestão e comunhão não são palavras mutuamente exclusivas? Lucro e empatia podem caminhar juntos?

A resposta cristã é “Podem!”. E a par de tudo isto, é justo que o trabalho doméstico continue como uma realidade inexistente? Não, e é “fundamental” que ele passe a ser reconhecido e tratado como “verdadeiro trabalho” independentemente de não ser remunerado. Bastava esta última conclusão para já ter valido a pena passar pela Universidade Católica na última semana no congresso da UNIAPAC.

Confesso que o facto de, entre as conclusões, ser reconhecida uma das minhas mais antigas lutas -- a do reconhecimento do trabalho doméstico, como contributo essencial e plenamente quantificável para a riqueza nacional, devendo por isso retirá-lo da sua invisibilidade social -- fez com que todo o trabalho realizado nos quatro dias do encontro mundial de empresários de inspiração cristã já me parecesse que só por si valeria a pena. Mas foi bastante mais do que isso: a proclamação, em uníssono, por mais de quatro centenas de empresários, gestores e investigadores “do amor ao próximo” como critério de gestão tem pelo menos o efeito de ir contra a corrente maioritária do individualismo/relativista, acreditando que o Capitalismo pode afinal “ser consciente”.

Não é comum ouvir professores e investigadores na área da gestão proporem como solução de sucesso uma forma de gestão cooperativa, onde os trabalhadores nunca podem ser vistos como simples “recursos humanos” porque a dignidade humana não é sequer compatível com a noção de utilização dos “recursos” do trabalho do outro. Mas a verdade é que desta vez aconteceu. E de tal forma se insistiu na tónica que, no final, uma psicóloga e empresária de uma pequena consultora de Leiria rejubilava por, mais uma vez no seio de um congresso da UNIAPAC, não se ter sentido a “alien” que normalmente se sente enquanto gestora num mundo onde a competição e a frieza parecem dominar todas as relações.

Ver em cada “colaborador o próximo”, com o que isso implica de profunda empatia, implica romper o ciclo vicioso da obsessão pelo aumento de produtividade e a apropriação desigual do lucro, e nas empresas pequenas isso nem sempre é mais fácil.

No entanto, a avaliar por algumas experiências, como a de um gestor americano que inclui nos quadros da sua empresa um terço de trabalhadores deficientes, nem sempre a abertura “ao outro enquanto igual” significa abdicar de uma gestão de sucesso. Pelo contrário, na sua empresa não havia nenhuma prova de que existissem diferenças na produtividade dos trabalhadores deficientes em relação aos outros.

No final do encontro, o africano Aimé Sene, um dos premiados como empresário “inspirador”, frisava a importância de ver cada trabalhador como um verdadeiro colaborador da sua gestão, lembrando quanto sentira a sua dignidade atingida quando um ex-patrão se lhe referia como “o meu empregado” (numa referência que se assemelhava à possibilidade de “alguém poder ser de outro enquanto mero prestador do seu trabalho”).

A profissão empresarial como uma vocação nobre foi a tónica geral do encontro e os prémios de excelência foram exatamente atribuídos aos que de alguma forma provavam que a vivência dessa “vocação” era genuinamente possível, não apenas pelos fins de algumas das empresas criadas como a filipina Phinma (uma empresa que, através da habitação e educação inclusivas, visa “tornar as vidas melhores”, levando a educação de sucesso às populações desfavorecidas), quer e sobretudo pela forma como cada um dos negócios destacados é gerido. O filipino Ramon do Rosário provou que é possível ser, a vários títulos, gestor de sucesso e empregador exemplar.

Rajendra Sisodia, professor na Universidade de Bentley e fundador e CEO do movimento mundial “Capitalismo Consciente”, foi outra das estrelas do encontro empenhado em provar que Adam Smith tinha razão quando falava de um capitalismo que não se esgotava na “ganância” dos empresários, como aparentemente se esgota o sistema capitalista atual “doente e gerador de um mundo que cria as condições para ser comandado por verdadeiros sociopatas”, como disse em conversa com a Renascença.

Sisodia, além de professor, é também inspirador de um movimento que tem já uma década e a que chama de “capitalismo consciente” e que pretende olhar as empresas como geradoras de valor para toda a sociedade, não limitadas a instrumentos de obtenção de lucros e dividendos para os respetivos acionistas. Nesta linha a empresa pode fazer parte integrante de um serviço prestado ao bem comum.

O mais curioso é que parece estar mesmo a surgir uma nova geração, notou o professor, que começa a colocar o lucro num plano subalterno face a novas conceções de bem-estar e dessa maneira as teses de Sisodia podem de repente começar a fazer caminho.

Parte dessa nova geração (presente também nos núcleos universitários de estudantes católicos) parece ter confirmado a esperança depositada nos “millenials” e marcado presença na tarde de sábado, ainda em Lisboa, no seu terceiro encontro (desta vez partilhado com a Comissão Nacional Justiça e Paz).

Estive lá e vi em que medida essa nova geração, sensível ao apelo do Papa Francisco cultiva a diferença e está muito longe de querer reduzir a sua vida ao show off do carreirismo consumista. Mais ecológica é também mais respeitadora da Casa Comum e vê nos tempos de lazer e dedicação à família e aos outros um apelo muito superior ao dos seus pais e irmãos mais velhos. Os testemunhos foram exemplificativos dessa radical diferença e da maior preocupação com o bem comum. Reunidos em torno da discussão do legado da Igreja sobre Doutrina Social foram muitos os jovens a introduzir no discurso da ação social de novo a palavra Amor.

O capitalismo que entrou nos últimos anos numa espécie de estertor anti-ético, talvez possa beber desta nova geração uma renovada consciência ética que, aproveitando o que tem de bom, consiga erradicar o desvio individualista que lhe suga o próprio sucesso e o vai conduzindo lentamente para o fracasso do caos. Como Sisodia apontava, estamos a atrair para as empresas demasiados “mercenários”, quando elas precisam provavelmente mais de alguns “missionários”, para quem a vida e o bem-estar não se traduzam apenas em folhas de Excel, e o resultado está infelizmente demasiado à vista de todos.

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