03 jun, 2022
Depois da euforia decorrente da derrota do comunismo soviético, sucederam-se os avisos sobre a necessidade de reformar o capitalismo, onde as desigualdades de riqueza se vinham a acentuar. No entanto, pouco se fez para contrariar essa tendência.
Parte dessa passividade perante o avanço das desigualdades tem a ver com o que Michael Sandel chama a tirania do mérito. Ou seja, a ideia de que o sucesso e o fracasso na vida são exclusivamente responsabilidade de cada um. (“A Tirania do Mérito”, ed. Presença – um livro cuja leitura recomendo vivamente).
Se os bem-sucedidos na vida julgam que o seu êxito se deve ao seu mérito, não terá grande sentido a solidariedade social e deixa de haver estímulo para ajudar os vencidos do progresso. Estes, por sua vez, sentem-se desprezados pelos vencedores e interiorizam que o seu falhanço se deve a eles próprios. Daí um enorme ressentimento contra as elites, que populistas como Trump souberam habilidosamente explorar.
A ideia de que o sucesso e o falhanço dependem do mérito pessoal foi reforçada por políticos de centro-esquerda. Bill Clinton, a sua mulher Hillary, Barak Obama e Tony Blair avançaram com políticas e justificações que, afirmando-se progressistas, confirmavam afinal a “tirania do mérito”.
Lembra Michael Sandel que a partir das décadas de 1980 e 1990 estes políticos “começaram a aceitar cada vez mais elementos das críticas dos conservadores ao estado-providência, nomeadamente à sua exigente noção de responsabilidade social”. O que levou a associar mais estreitamente o direito às prestações sociais à responsabilidade e ao grau de merecimento pessoal dos destinatários (pág. 63).
Entretanto ocorreu a pandemia da Covid-19. Segundo um recente relatório da Oxfam, intitulado “Lucrando com a dor”, a fortuna dos mais ricos cresceu tanto nos últimos dois anos como nos 23 anos anteriores. Nos dois anos da pandemia surgiu um novo milionário a cada 30 horas. “A fortuna total dos milionários equivale agora a 13,9% do PIB mundial. É o triplo do que representavam em 2000 (4,4%)”.
Enquanto isto, em cada 33 horas surgiu mais um milhão de pobres, muitos em pobreza extrema. Por causa da pandemia e da subida dos preços da alimentação e da energia.
Números escandalosos como estes parecem não ter provocado grande reação. Será que continuamos a assobiar para o lado e a virar a cara à trágica miséria que se agrava no mundo, a par com uma chocante concentração da riqueza numa minoria de ultra ricos?