Emissão Renascença | Ouvir Online
Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
A+ / A-

O desafio de Xi Jinping

05 jul, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A China tem um regime que priva de liberdade os seus cidadãos, vigiando-os e reprimindo-os permanentemente. Xi Jinping quer provar que a ditadura do PCC é um regime superior às democracias ocidentais e ao capitalismo. Talvez esse desafio ajude a democracia e o capitalismo a prosseguirem reformas que os tornem mais humanos.

Em 1788, um ano antes da tomada da Bastilha, que daria início à Revolução Francesa, foi publicado em França um livro com o título “Qu’est-ce le Tiers État?” Assinado por Joseph-Emmanuel Sieyès, um abade muito crítico dos privilégios do clero e da nobreza, aquele livro era um vibrante manifesto contra a exclusão da burguesia das decisões políticas da monarquia absoluta vigente então em França.

Estava prevista a convocação por Luís XVI dos chamados Estados Gerais (que em Portugal se chamariam Cortes), nos quais apenas participariam a nobreza e o clero. Era inaceitável, para Sieyès, que os comerciantes, os homens de negócios, os burgueses não tivessem uma palavra política a dizer. Tanto mais que essa classe ascendente era mais rica, mais trabalhadora e mais culta do que a nobreza e o clero. Com a Revolução Francesa, e após muitas peripécias (o terror, Napoleão, o regresso temporário da monarquia absoluta, etc.), a classe burguesa – o “terceiro estado” - chegou ao poder no séc. XIX.

Raciocinando como ocidentais, muitos de nós (nos quais me incluo) esperavam que, na China, se desse algo semelhante ao que aconteceu em França há dois séculos; concretamente, esperava-se que a classe média enriquecida e os multimilionários que o extraordinário crescimento económico chinês durante décadas gerou viessem reclamar liberdades cívicas e políticas, assim como direitos de participação na vida política daquele país. Só que isso não aconteceu nem parece que venha a acontecer no futuro previsível.

A China de hoje está a disputar aos Estados Unidos o lugar de primeira potência mundial, com um regime dito comunista, mas com caraterísticas adaptadas aos chineses, segundo Xi Jinping, líder do partido comunista chinês (PCC). A China atual ombreia com os EUA nas novas tecnologias e na ciência, superando de longe o que nessa área existe na Europa e na Rússia. No campo militar os EUA ainda dominam, mas a China possui armas nucleares e tem investido fortemente na defesa – que poderá um dia passar a ataque. Por exemplo, para reintegrar Taiwan, onde vigora uma democracia liberal.

O princípio “um país, dois sistemas”, que presidiu à transferência para a soberania de Pequim de Hong-Kong e Macau, bem como para tolerar Taiwan (onde se refugiaram em 1949 os derrotados pelo PCC, após uma longa e feroz guerra civil), esse princípio perdeu credibilidade com o que se passa em Hong-Kong, com as provocações militares chinesas contra Taiwan e com as incursões chinesas no mar ao Sul da China. Os EUA mantêm o compromisso de defender Taiwan; ou seja, a situação é perigosa.

A China foi humilhada no séc. XIX por potências ocidentais, com o Reino Unido à cabeça. Agora já possui força económica, tecnológica e militar para que não se repitam humilhações. O que é usado por Xi Jinping para estimular o sentimento nacionalista na imensa população chinesa, unindo-a em torno do PCC. E não há dúvida de que centenas de milhões de chineses saíram nas últimas décadas da pobreza extrema. Mas não se vislumbram entre os chineses ricos e muito ricos quaisquer veleidades de disputar o poder ao PCC ou, sequer, em tentar reduzir a enorme opacidade desse poder.

Xi Xinping aposta tudo no PCC, que domina o Estado na China. Xi encara com desprezo o colapso do comunismo soviético, colapso que ele atribui à permissividade de Moscovo, que, depois de Estaline, permitiu que os russos pudessem dirigir críticas ao partido comunista sem serem imediatamente presos. A vigilância do PCC sobre a população chinesa é permanente e brutal, utilizando as novas tecnologias informáticas em que a China dá cartas. A internet e as redes sociais são intensamente vigiadas e controladas.

Mas as frequentes prisões e a tortura são métodos antigos que o PCP também usa. Por exemplo, por vezes um dirigente empresarial desparece durante meses; quando tem sorte, reaparece “reeducado”. Por outro lado, é desumano o tratamento das minorias muçulmanas em Xinjiang, no Leste da China, em “campos de reeducação”, assim como a repressão no Tibete. Xi Jinping considera os direitos humanos uma invenção ocidental para prejudicar o seu país.

A China lançou-se à conquista do mundo. Pelo menos, para já, através de investimentos colossais. É a célebre Nova Rota da Seda, com a qual o presidente Biden dos EUA quer competir, forjando uma alternativa ocidental. Milhões de jovens chineses vão estudar para o estrangeiro, mas não deixam de ser aí vigiados. E as empresas chinesas que investem na Europa e noutros continentes suscitam uma dúvida permanente: agem em função de objetivos empresariais ou, também, de diretivas políticas secretas emanadas do PCC?

Xi Jinping quer provar que a ditadura do PCC é um regime superior às democracias ocidentais e ao capitalismo. Talvez esse desafio ajude a democracia e o capitalismo a prosseguirem reformas que os tornem mais humanos. Não será o que Xi Jinping deseja, mas aquilo a que o Papa Francisco tem exortado a humanidade de hoje.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.