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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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​Justiça, ética e corrupção

12 abr, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A decisão do juiz de instrução Ivo Rosa mostra que, afinal, a justiça portuguesa continua a favorecer quem tem dinheiro e poder social. O juiz considerou indício de corrupção o facto de milhões de euros terem circulado, entre bancos no estrangeiro nomeadamente, acabando em inúmeras entregas a J. Sócrates em sacos de notas. Mas caíram as acusações de corrupção a Sócrates.

O megaprocesso judicial “Operação Marquês” começou em 2013, com a investigação pelo Ministério Público (MP). Na passada sexta-feira foi finalmente encerrada a fase de instrução. Mas o MP vai recorrer para o Tribunal da Relação. E depois, provavelmente, haverá julgamento, que não será rápido. Há quem preveja que o processo só chegue ao fim lá para 2036. Uma justiça tão lenta não é justiça.

No século XIX e, menos, no séc. XX português os poderosos – pelo título nobiliárquico, o dinheiro, a posição social, a capacidade de influenciar polícias e magistrados, etc. – conseguiam frequentemente não ser incomodados pela justiça, que estava organizada sobretudo para julgar alegados crimes de gente pobre, sem influência social ou política. Já no corrente século, a justiça portuguesa começou a envolver pessoas altamente colocadas na sociedade e no Estado, tornando-se mais democrática. O antigo primeiro-ministro Sócrates foi preso em 2014, por exemplo.

Mas a decisão do juiz de instrução Ivo Rosa revela os limites dessa viragem. Se a Relação confirmar aquela decisão, dos 28 acusados só cinco irão a julgamento. E a justificação do juiz para deitar abaixo quase todas as acusações do MP tem sobretudo a ver com alegadas falhas processuais, como prescrições, e, na prática, com a recusa de validar provas indiretas em matéria de corrupção.

As normas processuais devem ser respeitadas. Mas é chocante que o juiz tenha considerado indício de corrupção o facto, não desmentido, de milhões de euros terem circulado, entre bancos no estrangeiro nomeadamente, acabando em inúmeras entregas a J. Sócrates em sacos de notas. No entanto, no entender do juiz Ivo Rosa não será por corrupção que Sócrates deve ser julgado. Ou seja, Sócrates foi corrompido, mas sobre ele não recairá por isso qualquer sanção, se a Relação não alterar neste ponto a decisão instrutória daquele juiz.

Claro que uma decisão tão esdrúxula como esta não seria possível se o Governo e os deputados já tivessem legislado sobre o enriquecimento ilícito, que aqui referi há dias. O PS opõe-se a legislar sobre esse crime potencial, alegando que as duas propostas já feitas eram inconstitucionais – o que se confirmou. Não parece exagero colocar a hipótese de os dois partidos do “centrão” dos interesses, PS e PSD, terem ficado agradados com os chumbos do Tribunal Constitucional (TC); há mesmo quem diga que foram aprovadas leis que, à partida, se sabia que não passariam no TC por causa da inversão do ónus da prova, que é inconstitucional. Os partidos rejeitaram outras propostas, de consagrados advogados, que respeitavam a constituição. Só pode concluir-se que o ataque à corrupção é uma mera conversa de propaganda. Não há vontade política nos maiores partidos para a combater a sério.

Os políticos e em especial os governantes e os deputados também são moralmente responsáveis pela escassez de meios humanos e materiais a que juízes e magistrados do MP têm acesso. A começar com a escassez desses juízes e magistrados. Faltam consultores especializados em informática e em crimes “de colarinho branco”, como os de corrupção, por vezes de grande complexidade financeira. Não há dinheiro, dizem. Não é verdade: há dinheiro para outras finalidades menos imperativas. A justiça é o núcleo central do Estado. Sem ela a funcionar com um mínimo de rapidez e eficácia o Estado perde legitimidade.

E assim regressamos a uma justiça de classe. Os poderosos têm meios de defesa que não têm os pobres. E o prolongamento dos processos não os afeta como afeta as classes baixas. É um Estado sem ética. Num artigo no “Público”, antes de conhecida a decisão do juiz Ivo Rosa, escreveu Rui Tavares: “Nunca nada é motivo de exame de consciência para ele (Sócrates), tudo sempre é motivo de cabalas e assassinatos de carácter, incluindo naquilo que ele próprio admite, como a utilização de dinheiro vivo em quantidades avultadíssimas ou o viver, como ex-governante, à conta de ‘empréstimos’ secretos de um amigo empresário”.

Não confundo direito com moral, que são esferas distintas embora relacionadas. Mas é dramática a crescente falta de ética na sociedade e no Estado em Portugal.

Comentários
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  • Thomas Payne
    20 abr, 2021 Lisboa, Portugal 07:16
    Eu concordo com a opinião deste Autor. Creio que faz sentido que eu mencione aqui um caso que conheço, pela minha experiência de reporter Estrangeiro em Portugal: Já faz quase um ano (12 meses) que um Cidadão Português fez queixa na "Justiça" contra uma advogada, a quem pagou (bastante) bem e depois ela deixou prescrever (muito) gravemente a acção que ele a mandou iniciar (muito) atempadamente. A última informação, sobre este caso, que consegui aceder parece indicar que essa queixa vai ser arquivada ao abrigo do (famoso) artigo da "Legislação Informal Portuguesa" que determina que: "Os problemas dos trabalhadores, sobretudo mais pobres, da Iniciativa Privada Portuguesa nunca afectarão o salário, e as regalias, dos Políticos ou dos (Dis)Funcionários Públicos Portugueses e, portanto, o Estado Português evita dar-lhes a devida atenção". Infelizmente o meu País de origem, a Irlanda, também não é grande exemplo de eficácia judicial mas, posso garantir que, num caso tão simples como o que relatei, tudo se resolveria em menos de seis (6) meses, apesar da situação da pandemia. A O.N.U. definiu que um "Estado Falhado" (Em Inglês "A Failed State") é: "Uma Nação de cujas Instiuições mais básicas, como as Judiciais, e/ou as de Saúde, se mostram incapazes de satisfazer as respectivas necessidades de uma porção significativa da sua População." Se tomarmos atenção ao que ocorre na (In)Justiça Portuguesa, realmente está comprovado que, infelizmente, o Estado Português é um "Estado Falhado"
  • Ivo Pestana
    12 abr, 2021 Funchal 21:20
    Os megaprocessos são um atentado à justiça e os arguidos riem-se com os advogados, desta justiça. Alguém falhou, não foram só os arguidos. Eu não sei o que é uma prescrição, tenho poucos estudos para perceber.
  • joao jose da Silva Moura
    12 abr, 2021 Coimbra 17:32
    Boa tarde, nunca ouvi nem Vi tantos ataques Há justiça quando foi o caso dos submarinos em que até documentos desapareceram, nem o no caso Bes.
  • paz peixoto
    12 abr, 2021 lisboa 16:20
    nem ao governo nem ao parlamento convem legislar sobre o enriquecimento ilícito porque grande parte dos deputados são advogados em poderosas sociedades que por sua vez respondem a poderosos grupos empresariais (football incluido), banca, seguros,etc
  • Maria Oliveira
    12 abr, 2021 Lisboa 11:37
    Sem pretender pôr em causa a isenção do magistrado que proferiu a decisão instrutória, certo é que a mesma contém erros grosseiros, que justificaram a não pronúncia relativamente a vários crimes de que os arguidos vinham acusados. A população em geral não é, naturalmente, versada em questões jurídicas e judiciais. Mesmo para quem o seja, impressiona a lentidão da justiça, a disparidade de decisões consoante se trate deste ou daquele magistrado e a falta de vontade política em criminalizar gravemente, como deve ser, os crimes de "colarinho branco", agravando a penalidade sempre que se trate de titulares de cargos públicos. A população não percebe este estado de coisas e está convicta de que há uma justiça para ricos e outra para pobres, o que é, em grande parte, verdade.